“Hoje em dia não se escreve mais nenhuma palavra com a letra
maiúscula, nem Igreja, nem às vezes o próprio nome de Deus”.
Chamou-me a atenção essa expressão, que não representa
somente uma crise de valores, mas um pensamento e uma das atitudes mais
emblemáticas da sociedade pós-moderna, com que precisamos saber dialogar.
Todas e todos compreendemos o que significa estarmos num mundo
líquido; pode nos assustar a indefinição, o relativismo, a falta de pontos
referências firmes. Com certeza é uma fragilidade da vida de hoje. Mas escrever
com a letra minúscula abre também espaços para a pluralidade, para a escuta de
outras vozes, para o diálogo entre pares e, talvez, o crescimento comum.
No passado 15 de novembro, Papa Francisco visitou a igreja
dos luteranos em Roma. Uma senhora de religião protestante lhe perguntou
publicamente se podia aproximar-se da comunhão junto com o seu marido católico.
Francisco deu uma resposta pastoral, humana, relançando o desafio também ao
discernimento entre os dois. Não se atreveu a remarcar uma doutrina e admitiu
não conseguir aplicar esquematicamente a lei para cada caso particular.
Usou letras minúsculas e entrou no diálogo com esse casal,
buscando aprofundar a questão a partir do ponto de vista de três pessoas que se
amam, amam as suas igrejas e procuram honestamente uma parte da verdade.
Ignorando as diferenças e as distâncias dogmáticas entre
protestantes e católicos no que diz respeito ao sacramento da eucaristia,
Francisco aponta ao que os une, o batismo, e desafia a buscar no interior da
consciência o que mais garante fidelidade à fé e amor às pessoas com que se
caminha.
Percebe-se o mesmo esforço na exortação apostólica Amoris Laetitia, por exemplo com
respeito aos sacramentos para divorciados recasados, ou à integração na
comunidade cristã dos casais homoafetivos.
Nada impede, nesse sentido, que uma comunidade reconheça e
abençoe um casamento civil homoafetivo, sem celebrar bodas canônicas. O
importante é que exista discernimento, conhecimento recíproco, sabedoria nesse “foro
interno”, inclusão e participação na comunidade.
Papa Francisco nos oferece duas pistas para esse
discernimento, que podem se transformar em estilo de vida para nós cristãos.
Vejamos, brevemente...
À pergunta da senhora protestante sobre comunhão, Francisco
comentou: “Compartilhar a Ceia do Senhor é
o final de uma caminhada, ou é o viático para caminhar juntos?”
Faz-se referência implícita, nessa afirmação, a duas visões
de fé e religião, que poderemos aprofundar em outros textos. A primeira
considera a religião como um conjunto de verdades adquiridas, como uma meta
alcançada e uma fortaleza que nos dá seguranças estáveis e indiscutíveis. Muitas
pessoas precisam dessa garantia para não vacilar na vida. Mas a fé é também
busca, caminhada incerta, escuta humilde de outros pontos de vista, porque Deus
é sempre totalmente outro e nunca ninguém poderá possui-lo por inteiro. Talvez
precisamos, em nossas igrejas, cultivar um pouco mais esse segundo aspecto, já
que até agora o primeiro acabou se impondo com muita mais força.
À senhora que o interrogou em Roma, Francisco indicou que é
necessário sentir-se pecadores. “Eu também
me sinto muito pecador”.
Trata-se de uma atitude permanente de Papa Francisco, quase
um estilo de vida e uma chave interpretativa de todas as relações. Muitos de
nosso diálogos entre diferentes se travam exatamente pela falta dessa humildade,
da capacidade de nos relativizar permitindo que a outra pessoa compartilhe
também sua experiência e ponto de vista. Além de não possuir toda a verdade,
precisamos reconhecer que nem sempre somos coerentes com o que dela já
compreendemos. O outro, a outra é oportunidade para sermos um pouco mais... nós
mesmos.
Recomeçar pelas letras minúsculas, portanto, não significa
esquecer os valores transcendentes, mas procurá-los a partir de outras
perspectivas. Que, afinal, instigavam também Jesus de Nazaré.
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