Vida e Missão neste chão

Uma vida em Açailândia (MA), agora itinerante por todo o Brasil...
Tentando assumir os desafios e os sonhos das pessoas e da natureza que geme nas dores de um parto. Esse blog para partilhar a caminhada e levantar perguntas: o que significa missão hoje? Onde mora Deus?
Vamos dialogar sobre isso. Forte abraço!
E-mail: padredario@gmail.com; Twitter:
@dariocombo; Foto: Marcelo Cruz

giovedì 22 dicembre 2016

Em fila, esperando o Natal



Nunca gostei de ficar numa fila.
Dá aquela sensação de perda de tempo, falta de respeito e humilhação de quem, por uma necessidade ou outra, precisa se submeter à desorganização ou desinteresse da instituição ou empresa de turno.

Nosso povo parece ter-se acostumado às filas. Nelas, perde-se a individualidade, o rosto e a história de cada um. Somos usuários, clientes, lista anônima de gente, em ciclos de vida e de consumo urbano que nos despersonalizam.
Cada pequena comunidade, de fé ou de luta (que afinal é a mesma coisa), é a tentativa de substituir a fila com o círculo, na prática da celebração, da escuta recíproca e da solidariedade com os últimos.

Nos dias passados, porém, fiz questão de entrar numa fila, e a saboreei passo a passo. Era a fila da despedida de dom Paulo Evaristo Arns.
O cardeal dos direitos humanos, defensor de muitos perseguidos pela ditadura militar, pobre com os pobres, traduziu a teologia da libertação em opção pelas periferias e as pastorais sociais.
Faleceu após 95 anos de vida apaixonada, lúcido e vigilante até o fim em defesa da democracia e dos pequenos.

Estava sendo velado na Catedral da Sé, e a fila começava lá no fundo da praça, para chegar devagarzinho até o altar. Uma fila em que todo mundo era igual: algumas pessoas de terno e gravata, mas muito mais gente simples. Podia-se imaginar as feridas da vida que alguns deles carregavam, e a gratidão pela existência de uma pessoa que os fez sentir defendidos e valorizados. “Nós existimos”, parecia gritar aquela multidão, e sua ocupação da igreja da Sé se tornava apelo, profecia, anseio por uma Igreja realmente dos pobres e em saída.

Um senhor negro, curvado pelos anos, com uma jaqueta de veludo marrom elegante em sua simplicidade estava também na fila, buscando homenagear dom Paulo. Fazia-se ajudar na caminhada por dois jovens, provavelmente seus netos, um à esquerda e outra à direita. Imaginei o tanto de história que esse homem carregava... Como é bonito ver dois idosos que se encontram, resgatando memórias de dignidade e de vida. E esperar que essa história se transmita aos mais jovens, na fila sem fim das gerações.

Eu também entrei na fila humildemente, pedindo a sabedoria, a paixão e o Espírito de dom Paulo. Essa longa linha de gente que atravessava a praça central de São Paulo mostrava quanto precisamos de testemunhas inspiradoras, coerentes e dignas. Num momento político de mediocridade, num contexto cultural de precariedade, escolhas voláteis e valores temporários, esse homem pequeno foi semeado como raiz no marco zero da cidade.

Colocar-se em fila, nesse caso, foi esperar um encontro, andar juntos na direção de uma luz.
É uma imagem bonita da preparação ao Natal, é o que desejo a cada amigo e amiga que caminha comigo.

domenica 4 dicembre 2016

Comunhão aos fiéis recasados



Maranhão, 2016.
Apesar de termos crescido muito, em estruturação do estado, melhoria da vida das pessoas e organização da igreja local, ainda estamos longe dos padrões de vida da Alemanha, dos EUA ou da Itália.
É daí que raciocinam e opinam os quatro cardeais que levantaram críticas públicas ao ensinamento de Papa Francisco sobre a relação da Igreja com os fiéis divorciados e recasados.

Um primeiro perigo de todo esse debate é reduzir a prática da Misericórdia às decisões sobre maior ou menor rigor quanto ao acesso aos sacramentos. É a tentação de discernir os princípios da Igreja a partir de dentro (“vamos primeiro arrumar a casa e organizar bem as regras internas, para oferecer aos de fora um ambiente sadio e ordenado”).
Eu estou com Papa Francisco: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos”.
Entendo, com isso, que também a reflexão moral e a interpretação dos princípios da Igreja deve sempre iniciar seu diálogo a partir daquilo que as pessoas e a vida “pelas estradas” apontam como maiores preocupações e interrogações do mundo de hoje. “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem” (GS 1), esse é o ponto de partida para o discernimento constante do Evangelho na Igreja.

Celebro quase todo domingo em pequenas comunidades do interior do Maranhão. Povo de muita alegria, resistência e fé. Não abaixa a cabeça, apesar de tanta injustiça que ainda engole no dia a dia.
Amargura profunda que se acumula nas entranhas.
Mas na hora da comunhão, na fila aparecem só duas jovens recém crismadas que ainda estão namorando, a ministra da eucaristia que nunca se casou e um casalzinho idoso que todos temos como grande e raro exemplo de virtude e sorte no matrimônio.
Muitas mulheres, com ainda mais crianças, não podem entrar na fila porque se casaram bem novas, o marido deixou elas por outras paixões, por covardia ou por ter migrado para longe em busca de trabalho e dinheiro, sem mais voltar.
Uma mistura de machismo e de pobreza estrutural acabou com esses embriões de famílias.
Quase todas as senhoras se juntaram a outro homem. Em diversos casos esse segundo enlace está funcionando, pelo menos um pouco. O homem não bate na companheira, seu trabalho na roça ou nas firmas garante um mínimo de sustentação, vez em quando ele também se aproxima à igreja (o terço dos homens agora parece uma porta de entrada para vencer a “vergonha de gênero” na casa de Deus e do povo!).

Desculpem essa descrição estereotipada, sei que há muitas nuances e também que caberia muito mais reflexão, mas aqui não temos esse espaço. Faço confissão pública que, em diversos casos, incentivei a comunhão para essas senhoras, teimosas construtoras de comunhão dentro de suas famílias.
Quando alguém manifesta desejo e necessidade de comungar à Eucaristia, solicitamos à comunidade cristã que conheça mais de perto sua situação familiar. Pedimos ajuda sobretudo aos ministros e ministras da Eucaristia, que visitam a casa daquela pessoa, dialogam sobre suas razões de fé e sua participação na vida da comunidade. Convidamos a pessoa para que celebre o sacramento da Reconciliação, que muitas vezes é também aconselhamento, restauração de uma vida sofrida que está buscando reorganizar-se, desabafo e busca de acolhida.
Verificamos junto à comunidade se, por algum motivo, a comunhão daquela pessoa numa celebração comunitária pode vir a criar escândalo, ou se seria compreendida como gesto de inclusão e compromisso coletivo de apoio na reconstrução da família dela.

Me parece uma prática pastoral respeitosa, atenta e em linha com o “Princípio Misericórdia”, ao qual eu por primeiro sinto necessidade cotidiana de me converter. Porque seguir as regras e sua aplicação imutável é mais fácil e instintivo.

domenica 20 novembre 2016

Defender a vida e os direitos humanos




Ontem à noite o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos 'Carmen Bascarán' ocupou a praça pública com uma de suas manifestações culturais mais lindas.
Celebrava 20 anos de história em Açailândia-MA, com o protagonismo de 150 crianças e adolescentes, todas as suas famílias e dezenas de trabalhadores e trabalhadoras resgatados do trabalho escravo contemporâneo. Nós Missionários Combonianos, cofundadores desse Centro, estávamos juntos.

Escolher uma praça para fazer memória, no cenário desses dias, tem um profundo significado político. Ainda mais ao falar de direitos humanos e ao defender a diversidade e o respeito de raças, religiões e gênero...
O cenário nacional e internacional está consolidando a privatização de interesses, o racismo, a arrogância violenta. Mais do que nunca é tempo de voltar às ruas e de retomar o trabalho de base.

O Centro de Defesa está na rua promovendo a arte e o encontro entre as pessoas. Isso toca cordas mais profundas, que são aquelas de nossa humanidade. Oferece uma palavra a mais, para além da banalidade do ódio que está se espalhando de novo.
O Patriarca ortodoxo Bartolomeu, ao encontrar milhares de prófugos na Grécia, afirmou: “Quem tem medo de vocês é porque não olhou em seus olhos. Não conhece seu rosto”.

Quem defende os Direitos Humanos experimenta quanto é difícil se fazer compreender e conquistar mais pessoas nessa caminhada! Daniel Comboni diria: é como enterrar pedras escondidas. Mas é sobre essas pedras que se fundamenta uma sociedade humana!

Quando você defende os DDHH, alguns lhe consideram um utopista que ainda não entendeu como funciona o mundo. Outros lhe atacam, porque está atrapalhando a ordem e o progresso, porque para o desenvolvimento é necessário algum sacrifício (humano?).
Cada vez mais os defensores dos DDHH, sobretudo em nossa América Latina, são criminalizados-as e perseguidos-as.

Mas alguém tem que ter a coragem de dizer uma palavra diferente do óbvio, uma palavra inédita. De não se adequar às regras impostas ou à lógica instintiva dos “direitos dos mais fortes”.

"Quando te elevas ao nível do amor, da sua grande beleza e poder, a única coisa que buscas derrotar são os sistemas malignos. Amas as pessoas que caíram na armadilha desse sistema, mas tentas derrotar esse sistema [...]
Ódio por ódio só intensifica a existência do ódio e do mal no universo. Se eu te golpeio e tu me golpeias, e eu te devolvo o golpe e tu também me devolves, e assim sucessivamente, é evidente que se continua até o infinito. Simplesmente nunca acaba.
Em algum lugar, alguém deve ter um pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode romper a corrente do ódio, a corrente do mal".
(Martin Luther King, Alabama, 1957)

A história do Centro de Defesa está marcada pela mística que também anima nós missionários combonianos. Destaco, nela, três dimensões chave.

1. Regenerar a África com a África
Era o lema de Daniel Comboni ao iniciar sua missão no Sudão, ainda no século XIX.
Não adiantam intervenções e soluções vindo de fora. Não fazem sentido e não se sustentam.
O caminho que realmente transforma a realidade e as vidas das pessoas com que estamos deve ser traçado dia após dia, quase tateando, por tentativas, mas juntos. Envolvendo essas próprias pessoas.
Investindo nas crianças, nos adolescentes, no trabalho de base, como está fazendo o Centro. Quem é que faz, hoje, trabalho de base?!
Comboni dizia “Regenerar”: significa reconhecer que no outro há um grande potencial silenciado, talvez aniquilado e consumido pelos modos de vida de hoje, mas que pode e deve ser despertado.

2. Com a África
A valorização das raízes afrodescendentes marcaram desde o começo a história do Centro de Defesa.
Um outro missionário comboniano, Heitor Frisotti, dizia que “Tem um cheiro de Evangelho nas coisas de negro”. Como padre, não pretendia converter as culturas afro ao catolicismo. Mas saboreava o gosto do Evangelho ao encontrá-las e entrevia a possibilidade de buscar juntos os sinais da presença de Deus na história de hoje.
Anacleta, quilombola de Santa Rosa (Itapecuru Mirim-MA), visitou com outras companheiras-os a Guiné Bissau, na África, de onde vieram seus antepassados. Comenta sempre a surpresa e a força do resgate de suas raízes. A riqueza de sua cultura, a resistência do povo negro que atravessou os tempos, a indignação e a revolta que o fizeram livre, a paixão e o orgulho de uma pertença...

A comunidade de Piquiá de Baixo, em luta teimosa por seu reassentamento coletivo em autogestão, em fuga da poluição minero-siderúrgica, tem que escolher seu novo nome, mas ninguém quer fazê-lo renegando suas raízes: “o nome de Piquiá tem que permanecer, é nossa raiz!”.
Da mesma forma, precisamos alimentar o orgulho de ser maranhense, de conhecer e promover nossa cultura local. Meu pertencer a Açailândia, o amor por essa cidade, a participação ativa à vida dela, para transformá-la, para que continue sendo Cidade dos Açaís e não se transforme numa cidade de aço...

3. Autosustentação
O Centro de Defesa tem uma forte capacidade de auto-regeneração. Admiro o esforço de toda a comunidade para manter as atividades do Centro.
Todos sabemos de suas dificuldades econômicas, mas quanto trabalho escondido para que isso não comprometa o dia a dia dos projetos! É feijoada, é rifa, é uma campanha de arrecadação... Isso tudo não serve só para coletar dinheiro: costura relações de pertença, teima em mostrar que esse Centro é de todos e todas, está nas mãos da cidade.
Da mesma forma, se garante acima continuidade entre lideranças, de uma geração para outra, porque esse sonho e compromisso é de muitos e não pode se interromper!
Por isso, o Centro de Defesa é muito maior daquilo que pode parecer.

“Vocês, os movimentos populares, são semeadores de mudança.
Promotores de um processo em que convergem milhões de pequenas e grandes ações, encadeadas de maneira criativa, como numa poesia: por isso quis chamar vocês de «poetas sociais»”
(Papa Francisco, discurso aos movimentos sociais no Vaticano, novembro 2016).