Vida e Missão neste chão

Uma vida em Açailândia (MA), agora itinerante por todo o Brasil...
Tentando assumir os desafios e os sonhos das pessoas e da natureza que geme nas dores de um parto. Esse blog para partilhar a caminhada e levantar perguntas: o que significa missão hoje? Onde mora Deus?
Vamos dialogar sobre isso. Forte abraço!
E-mail: padredario@gmail.com; Twitter:
@dariocombo; Foto: Marcelo Cruz

giovedì 21 agosto 2008

Dois cachorros de caça...


Toda manhã, quando levanto e rezo, é como se soltasse dois cachorros para a caça: “Já!”
Um deverá correr atrás das pessoas, perseguir os sonhos e a luta do povo, acompanhar seus passos, percorrer quilómetros de caminhada e histórias.
O outro deverá correr dentro de mim, abrir espaços de acolhida, fazer-me crescer na paciência, no respeito, no amor. Buscar tudo o que sou e ainda não consegui viver, mostrar-me quanto longe posso avançar no caminho interior.
A Palavra de Deus é o rasto a seguir, abre caminho em ambas essas direções.

À noite, cansados, esses dois cachorros voltam para casa. Muitas vezes perdidos, com a impressão de ter avançado pouco.
Quase sempre, confesso, o que corria por fora volta com muitas histórias para contar, dezenas de encontros para partilhar. E o outro percebe que correu pouco, pois tinha asperidades bem maiores a enfrentar: muitas vezes fica parado, bloqueado sempre pelos mesmos obstáculos
Mas chamár os dois cachorrinhos de volta em casa, toda noite a descansar, me ajuda, me unifica, me provoca a treiná-los cada vez melhor.

Hoje celebramos o Corpo de Cristo. Meus dois cachorros devem conhecê-lo bem: um procura todas as pegadas que Jesus deixou no meio do povo. O outro busca encontrá-lo escondido até em meu pobre corpo, que pouco se parece com o corpo de Cristo, mas talvez mantenha algumas gotas de perfume dele.

Busco a profecia e a sabedoria


O tempo passa, nessas terras brasileiras carregadas de desafios. Alternam-se muitas perguntas, mas uma fica na base de tudo: onde está Deus?
O sentido da vida é estar onde Deus está e viver conforme sua paixão.
Dou-me conta que há duas maneiras de fazer isso, ambas muito importantes. Para nos entender, vamos chamá-las 'sabedoria' e 'profecia', pois também na Bíblia nossos grandes mestres de vida assumiram essas duas dimensões.

A profecia, hoje aqui, nos obriga a cada dia a lutar contra grandes injustiças, desproporcionais às nossas forças. Nos encontramos no coração de um sistema que suga recursos das entranhas da terra e do povo.
Todo dia passa em nossa frente, 12 vezes, dia e noite, o trem da segunda maior mineradora do mundo. Carregado de ferro e outros minérios, é um saque cotidiano e silencioso que o povo já se acostumou a agüentar. Ao seu redor, cresceu um ciclo produtivo extremamente perigoso para as pessoas e o meio-ambiente: siderúrgicas, carvoarias, poluição, monoculturas de eucalipto, pessoas sem-terra e terra sem-vida...
O latifundio aqui também é o primeiro responsável pela morte da floresta e pela falência da pequena agricultura familiar.
A profecia pede para assumir uma posição firme, com competência e seriedade. Por isso nasceu em final de 2007 uma grande campanha, “Justiça nos Trilhos”, para exigir uma repartição mais justa dos enormes lucros da companhia minerária Vale e um retorno efetivo para nosso território e nosso povo.
Essa campanha participará ao Fórum Social Mundial, onde encontrará muitos parceiros. Até lá, estamos construindo várias alianças com entidades e pessoas, ao longo do País inteiro e com interessantes contatos internacionais.
Esse tipo de atividade nos obriga a agir muitas vezes em níveis distantes do nosso povo, viajar, encontrar outros grupos e municípios, escrever, documentar e estudar, buscar contatos longe daqui, para fazer conhecer essa realidade até agora escondida e silenciosa.

Mas cresce a saudade das pequenas relações cotidianas, da visita às pessoas: tomar um cafezinho juntos, em suas casas simples, saber do que está acontecendo às nossas famílias no bairro, celebrar a vida todas as vezes que nos reunimos em nome de Deus...
É a sabedoria popular, que precisamos beber em pequenos goles para entrar de mansinho no coração desse povo, crescer como parte deles, entendê-los e entendermo-nos. Esse é um povo resistente, que não perde a esperança apesar de todas as dificuldades que atravessa. São artistas da vida, capazes de celebrar e festejar com uma criatividade que se renova no profundo de cada um.
Ficar no meio deles nos ensina a falar a mesma língua, entender que tipo de igreja pode realmente libertá-los e fazê-los crescer, contemplar Deu escondido nos pequenos gestos da comunidade.E tudo o que realizaremos não será simplesmente uma iniciativa nossa, mas sim uma escolha contruida juntos, comendo arroz e feijão da mesma panela!

Não é fácil manter esse equilíbrio entre a profecia e a sabedoria; olhando para Jesus de Nazaré, admiro quanto conseguiu fazer disso uma síntese de vida. Decidido, líder, corajoso para denunciar, tinha clareza quanto ao objetivo de sua missão: libertar os oprimidos, devolver a visão a quem não consegue mais interpretar a vida, quebrar as correntes de todo tipo de escravidão.

Mas ao mesmo tempo era um homem que sabia parar para ficar com as pessoas. Conhecia os ditados, as expressões e os costumes populares, festejava junto com eles, dialogava e fazia muitas perguntas para entender, sintonizar-se com o pensamento e a esperança do povo.
E ainda admirava e silêncio a elegância de um lírio do campo ou a pequenez de uma semente de mostarda...

Esse equilíbrio é síntese amadurecida da vida, é um desafio para cada um de nós, nossas famílias, nosso ritmo de vida: decididos e convencidos, precisamos saber bem qual a direção para seguir. Os que nos seguem (filhos, amigos, companheiros de caminhada) devem perceber nossa convicção, a clareza e obstinação de quem busca o sonho de Deus!
Ao mesmo tempo, porém, quanto é importante dedicar tempo à escuta de cada um, saber parar, impregnar-se da vida dos outros, diminuir o ritmo para caminhar todos juntos...

O Espírito que animou o Nazareno nos ajudará também para viver assim, com profecia e sabedoria!

Ressurreição


Não conheço a Deus nem posso me atrever a dizer quem ele é.
Mas há três atitudes do Deus dos Evangelhos que me cativaram e que escolhi como pontos de referência também para minha vida:
- o Deus que Jesus de Nazaré veio desvendar é o Deus da encarnação. Enxarcar-se de vida, mergulhar na história, nadar fundo dentro da existência dos outros e escolher as existências mais pobres e excluídas. Isso faz muito sentido para mim também.
- esse mesmo Deus vive uma paixão de amor e sofrimento. Já disse quanto isso me apaixona também.
- enfim, Jesus de Nazaré ressuscitou. Em palavras mais ordinárias diria: sua vida fez sentido até o fim. Vamos tentar entender um pouco mais o que é ressurreição... (aqui ninguém quer fazer teologia: é a pobre experiência de um missionário que se interroga sobre o sentido daquilo que vai dizendo ao seu povo!)

Uma coisa é certa: não há ressurreição sem paixão. Assim como a vida não vem de graça, mas precisa de paixão e cuidado para brotar, também a ressurreição, a vida cheia, é fruto de paixão.
O que mais gosto dos contos da ressurreiçaõ é a prova que Jesus usa para mostrar que voltou a viver: ele não chama a testemunho milhares de anjos, nem brinca com estouros de luz e de glória, nem se houve uma voz forte do alto que diz “Esse é meu filho, eu o tirei da morte”. Não: simplesmente Jesus mostra as mãos e os pés, furados, calejados. Mãos abertas e pés novamente a caminho.
Ressuscita-se nas mãos e nos pés calejados. Se perguntarmos a um nordestino o que isso significa, teríamos a melhor das exegeses!
Não há ressurreiçao sem paixão: para mim significa que ressuscita toda pessoa que lutou, buscou sentido, viveu para um objetivo. A ressurreição é a confirmação final que valeu a pena, mesmo se no meio da vida muitas vezes não encontramos saídas, não enxergamos motivos de esperança.
Nossa sede de vida, sede de Deus, ‘cava cisternas’ durante essa existência. Na vida sem fim essas cisternas serão colmadas, cada uma na sua medida: quem lutou e foi em busca de sentido receberá em proporção à sua sede.
“Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada nos braços de vocês” (Lc 6,38). Qual a medida dos seus braços abertos? Qual a profundidade das cisternas que sua sede de vida cavou?

Há pessoas que serão eternamente lembradas por sua sede de vida: são testemunhas (‘martires’) da ressurreição. Ir. Dorothy, por exemplo, foi morta de braços abertos, na luta por terra e dignidade de seu povo. Ainda hoje os companheiros do Comitê Dorothy reunem-se semanalmente e encerram seus encontros com uma mística irresistível: após o assassinato da irmã, foi recolhida num vaso a terra que recebeu seu sángue. Em círculo, tocando esse vaso, eles gritam juntos “Dorothy vive! Sempre, sempre, sempre!”
A sede de Dorothy ainda faz sentido e continua na luta de seus companheiros.

Há outras pessoas de quem ninguém lembra: pobres, viveram o tempo todo às margens da sociedade e lutaram para sobreviver e garantir vida a seus filhos e amigos. Eles também ressuscitam, pois a sede de vida e de sentido recebe uma medida de consolação e paz nos braços do Pai, que ama sobretudo os pobres. Também a vida dos mais esquecidos faz sentido, nos braços de Deus.

De alguma forma, portanto, estamos decidindo desde já se e quanto ressuscitar.
A intensidade da vida e a profundidade das respostas que receberemos depende da paixão e das perguntas que esquentam nossa vida de hoje.
Por isso Jesus diz: “todo aquele que acredita em mim não morrerá, para sempre”.
Escolhe, pois, a vida!

Paixão de Deus e paixão da gente


A paixão não se resume a um tempo particular do ano, como a semana santa, milagrosamente desaparecendo ao chegar o domingo de Páscoa. A paixão é uma atitude permanente do coração.

A página mais bonita do Evangelho que fala de paixão é a narrativa da mulher que entra, com tremor e coragem, na sala dos homens sentados à mesa e quebra o vaso de essência perfumada para ternamente ungir Jesus. A paixão dessa mulher vai muito além de qualquer regra estabelecida, quebra os preconceitos e não se importa com o julgamento dos outros. Não calcula os gastos nem guarda alguma coisa para si.

Esse ícone é símbolo do milagre mais bonito da vida: no nascimento de uma criança a mulher prestes a dar à luz ‘quebra-se’ por dentro para deixar vir ao mundo uma nova pessoa. Fruto da paixão-amor, o milagre da vida exige paixão-sofrimento para se realizar.

Paixão de amor e sofrimento: não dá para distinguir. A criação geme e sofre as dores do parto para que brote uma vida nova. Até Deus sofre a cada dia assumindo o esforço da humanidade para defender a vida.

Donatella, amiga que vive há anos em Belém no meio da violência imposta ao povo da Palestina, sente esse sofrimento na pele. Em Belém, Deus continua a sofrer as dores do parto, tentando renascer “na tristeza de uma noite escura, nas lágrimas das crianças, nas janelas fechadas por medo, na paz que não chega, nas vítimas de ontem, de hoje e de amanhã”.

Donatella é uma das ‘parteiras’ daquela terra: partilha a paixão de Deus para o nascimento da vida a cada dia. Para ela, paixão é não esquecer: “quero manter os olhos bem abertos sobre esse mundo tão humano feito de penumbra e de noite, de amor e de conflitos, de gritos e sorrisos, de lágrimas e de ternura”.

Sermos ‘parteiros’ da vida ainda não nascida: essa é nossa paixão missionária! A vida não vem de graça... É dom de Deus, sim, mas Ele mesmo sofre e luta para que ela brote, seja protegida e se realize em plenitude.

Muitas vezes, nas contradições violentas desse Brasil, sinto o peso da vida que custa a nascer. Há dias que são mais serenos e outros que são como becos sem saída... O importante para mim, como diz Donatella, é não querer esquecer. Carregar permanentemente conosco os anseios e os sofrimentos de muitos, hospedar dentro de nossa existência a existência de muitos outros. Deixar de viver sozinhos.

Quando celebramos a paixão de Deus, fazendo memória na missa, sempre nos lembramos do Cordeiro que ‘tira’ o pecado do mundo. Mas a expressão mais certa seria “Cordeiro de Deus, que carregas o pecado do mundo”. É essa a paixão de Deus: carregar consigo as esperanças e a dores de um mundo que custa a nascer de verdade.

Essa paixão não se resolve como num toque de mágica logo que chega o dia da Páscoa. Ao contrário, nosso tempo é como um permanente sábado de espera, uma longa vigília que existe entre as feridas da morte de sexta-feira e as primeiras luzes do Novo Dia. Entre o amor e o sofrimento, entre a derrota e a ressurreição.

Essa busca e esse desequilíbrio me desafiam... e me apaixonam!

Para uma ecologia da mente e do coração - Ensaio 2


Em nosso primeiro artigo, introduzimos o paradigma ecológico como desafio para novas atitudes missionárias. Diferenciamos três esferas de reflexão: a dimensão cultural, aquela econômica e a vida dos pobres. Consideramos que não faz sentido uma proposta ecológica a não ser numa constante interação com essas três vertentes.
Nesse artigo queremos aprofundar a primeira dimensão, cultural-religiosa:

“Não podemos mais enfrentar um desafio ecológico isolando-o do contexto social, cultural e até religioso em que se encontra inserido. Está em questão uma visão diferente do mundo, que requer conversão, isto é, novas atitudes e novos objetivos nos olhos e na prática de cada pessoa, igreja e sociedade”.

Qual é um dos perigos atuais? Como dizem os jovens da periferia de São Paulo, “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza”. De repente, também nós igrejas, missionários e leigos podemos promover vazios discursos ecológicos mantendo, porém, atitudes e pensamentos totalmente anti-ecológicos.


Uma visão distorcida da realidade


Toda práxis de hoje deriva de idéias e valores sedimentados há tempo em nossa cultura, religião e visão do mundo.

Desde as primeiras tentativas de explicação sobre a origem do mundo, o sentido da vida e o papel do ser humano na criação, reconhecemos a influência de um pensamento ‘viciado’.
A maioria dos mitos da criação nasceram em épocas de conflito social, como tentativas de dar razão dos desequilíbrios da história. Vivendo em épocas de conflitos, as pessoas julgavam que esses fossem reflexo de dinâmicas violentas no céu (conflito de deuses). A cosmogonia de muitas culturas nasceu como fruto dessa interpretação distorcida inicial. O mundo é violento porque os deuses são violentos, ou, pelo menos, sabem ‘se fazer respeitar’!

As relações entre todas as criaturas continuaram sendo reguladas por esse modelo.
O que tem valor e se afirma? A pessoa e o sistema que consiga impor uma ordem violenta, pondo fim, assim, a todo tipo de conflito.
É a teologia e a sociologia da força, das relações dualistas e androcéntricas, da competição e da luta pela sobrevivência. A própria natureza, nas suas regras mais elementares de seleção natural, confirma esse esquema.

A história da religião cristã em várias de suas passagens reforça essa leitura: afirma-se um 'Deus' forte, controlador, Pai-Patriarca, ordenador do cosmos ao qual nada pode fugir (e que pune e corrige com firmeza quem desobedecer à ordem estabelecida).
A serviço desse 'Deus' existe uma casta privilegiada de funcionários escolhidos (sacerdotes, muitas vezes pertencentes à mesma etnia ou grupo). Um sistema bem articulado organiza a sociedade toda em torno dessa hierarquia divina imutável: quem nasceu para servir permanecerá servo, obediente à ordem indicada por 'Deus'.

Observe-se que o termo ‘hierarquia’ deriva da palavra grega hierós, que significa ‘santo’. O sistema de poder e as relações de autoridade e obediência se impõem automaticamente como derivadas de ‘Deus’ e abençoadas por ele.
No antigo Israel essa construção cultural gerou e legitimou o sistema dos tributos e do Templo: a ordem religiosa e aquela sócio-econômica sobrepuseram-se, impediram todo tipo de alternativa e garantiram a segurança social através da imposição.
O Biblista Sandro Gallazzi chama a essência dessa religião de “Monolatria devastadora”: não sobra o mínimo espaço para a liberdade e a pluralidade da vida.

O Templo e o Império andavam de mãos dadas desde o tempo de Jesus, e essa aliança abençoada se re-propõe ao longo da história toda. O sistema de culto e sacrifícios de Jerusalém promovia a concentração da riqueza em nome de Deus: dai vêm o tesouro do Templo, a colheita das oferendas para a purificação ritual, as taxas que o povo tinha que pagar contemporaneamente à dominação política estrangeira e aos seus aliados da hierarquia sacerdotal.


Religião anti-ecológica?

É interessante observar como essa estrutura político-econômica, com uma forte influência religioso-cultural, tinha desde o começo um impacto violento também na esfera ecológica: o sistema de sacrifícios permanente previa um saque consistente dos recursos do povo e da natureza, como bem ressaltam várias passagens bíblicas. Entre elas, eis um trecho do livro de Neemias, capítulo 10:

Nós nos comprometemos a entregar todo ano a terça parte de um siclo para o culto do Templo do nosso Deus. Isso servirá para os pães oferecidos a Deus, para a oferta diária, para o holocausto diário, para as solenidades dos sábados, luas novas e festas, para as consagrações e sacrifícios pelo pecado de Israel, e para todo o serviço do Templo do nosso Deus. Nós, sacerdotes, levitas e povo, divididos por famílias, tiramos sorte para ver quem ofereceria lenha a ser levada ao Templo nas épocas certas, todos os anos, a fim de acender o fogo no altar de Javé, nosso Deus, conforme está escrito na Lei. Nós nos comprometemos também a levar para o Templo de Javé, todos os anos, os primeiros frutos de nossas lavouras, os primeiros frutos de todas as árvores frutíferas, e os primogênitos de nossos filhos e rebanhos, conforme está escrito na Lei; e a entregar aos sacerdotes, que servem no Templo, os primogênitos de nossos rebanhos graúdos e miúdos”.


O gasto de madeira anual era enorme, para permitir o holocausto diário (a palavra holocausto significa ‘queimar tudo’). O sistema de sacrifícios era baseado na crença do sangue e do fogo como elementos de expiação e purificação: o perdão do ‘Deus’ ordenador social era mediado através do derramamento do sangue, do sacrifício de vítimas animais e da queima de seus corpos.
Gallazzi, num artigo intrigante, pesquisa os cultos sincréticos no único templo de Iahweh fora de Israel: Elefantina, no Egito (VIII-VI século antes de Cristo). O culto javista é associado, naquele templo, a uma outra divindade, feminina.
O templo não era concebido como concorrencial ao de Jerusalém: “É culto de mulheres para a Rainha dos Céus, culto não sacrifical, feito de incenso, de comida e de bebida, culto para a fartura e a fertilidade, culto popular, que dispensa sacerdotes e templos, celebrado na cidade e no campo”. “Memória de uma religiosidade não excludente e de um javismo ainda não monoteísta”.
Um altar sem sacrifícios, símbolo evocativo de uma sociedade que rejeite a violência como meio de controle social e ambiental. Além disso, “a presença de um culto a uma divindade feminina devia abrir às mulheres espaços sociais que eram impensáveis a partir de um culto exclusivamente monoteísta e masculino”.
Experiências religiosas desse tipo, sem a pretensão de soluções politeístas, simplesmente nos testemunham que no diálogo com outras culturas, religiões e povos, “outro Iahweh é possível”!


Uma mudança de época e cultura

Percebemos até agora a complexidade e as raízes profundas de um modelo social de desenvolvimento agressivo e irresponsável. A parede encostou-se nas costas da humanidade: nesse sistema distorcido não há saídas.
“Nossa geração assiste ao fim da concepção de desenvolvimento baseado no modelo industrial — em que se pressupunha a inesgotabilidade da natureza — e ao início de um modo de civilização baseado na sustentação de todas as formas de vida. O marco que separa essas duas concepções de mundo, sem dúvida, foi a tomada de consciência da 'crise ecológica'”. (Documento 'Os pobres possuirão a terra' – bispos e pastores do Brasil sobre a ecologia, 2006).
Duas concepções do mundo: se queremos realmente começar uma ‘purificação ecológica de nossa mente e coração’, é preciso assumir uma nova concepção do mundo, em todas as esferas da existência e das relações.
A resposta à crise ecológica não pode ser simplesmente uma corrida a tampar os buracos, costurar as feridas da terra. Hoje precisamos urgentemente de um movimento de conversão radical, assim como em várias épocas bíblicas o Pai da Vida nos pediu, com voz de súplica e de comando.
Rajendra Pachauri, presidente do Comitê Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), queria expressar essa urgência, quando disse: “Aquilo de que realmente precisamos é uma nova ética”.
Gallazzi, no artigo ‘Evangelho da Criação’, explica assim: “Trata-se de um olhar diferente. Como ver os pássaros do céu, se nossos olhos só enxergam colheitas abundantes e celeiros abarrotados? Como prestar atenção aos lírios do campo, se nossos olhos são vislumbrados por roupas suntuosas, sinal de glória e poder? Pássaros e flores nos desafiam, então, a mudar de lógica, a mudar de mentalidade.”
Há tempo (até agora com poucas mudanças profundas) reflete-se sobre a necessidade de mudar os ideais e os parâmetros, usando como exemplo os valores olímpicos tradicionais: “citius, altius, fortius!” (mais rápido, mais alto, mais forte!). A mudança que precisamos construir é: “mais lento, mais profundo, mais terno”.
O modelo produtivo-consumista desde sempre pregou o evangelho da eficiência e produtividade, características típicas dos adultos ‘machos’. Valores como a criatividade e a beleza, ao contrário, pertencem à esfera mais ampla da humanidade como um todo, sem limites de idade, sexo, cultura ou condições físicas. Todos podem apreciar e gerar beleza, cada um à sua maneira.
O motor do mundo neoliberal é a competição. Mas ‘cum-petere’ originariamente significava ‘procurar juntos’ e fazia apelo a valores hoje considerados fracos: a solidariedade e a partilha.

Assim, a maioria das religiões precisa operar uma mudança radical de objetivo, focando seus esforços e recomendações não mais sobre a salvação individual, mas sim na busca de uma redenção coletiva, salvação de tudo! É mais uma revolução copernicana do nosso inconsciente religioso: conseguem imaginar o potencial de uma Igreja e de todas as religiões assumindo essa mudança de paradigma?
O gesto profético do chefe indígena que devolveu a Bíblia a João Paulo II em sua visita ao Brasil denuncia exatamente isso: os povos e a criação toda exigem de nós cristãos uma conversão profunda, capaz de contagiar os modelos sociais e econômicos que se geraram a partir de nossas construções ético-religiosas ao longo dos séculos.

Algumas diretrizes essenciais dessa conversão? Uma mudança corajosa do individualismo à pluralidade, da centralidade do homem à circularidade das relações com a criação toda.
No livro de Gênesis, de forma fascinante, Deus fala ao plural: “Façamos o ser humano”. E o Deus plural criou (criaram) homem e mulher, para se completarem, pois ninguém sozinho é suficiente a si mesmo. Desde a criação foi enxertado em nós o princípio da mutua responsabilidade.
Por isso, também é tempo de uma aliança das religiões para o cuidado da casa de todos. Como dizem as nossas irmãs Igrejas Reformadas, é tempo de olhar para o mundo como uma única “Comunidade de vida” chamada a “sustentar a vida”.


Referências:

- Confessar a fé em Cristo perante a injustiça econômica e a destruição ecológica, Assembléia Geral das Igrejas Reformadas, Accra 2004 – Encarte da revista italiana RIFORMA n. 45 - 19 novembro 2004
- Sandro Gallazzi, Elefantina: outro Iahweh é possível, RIBLA, n. 54, 2006
- Sandro Gallazzi, O Evangelho da Criação, ensaio para a CF 2007
- Os pobres possuirão a terra, Documento conjunto de bispos e pastores do Brasil sobre a ecologia, 2006

Missão e Ecologia - ensaio 1


Muitas vezes, sem mesmo querer, a igreja encontra-se 'forçada' a fazer teologia em virtude de seu encontro missionário com o mundo (Bosch).

Acontece o mesmo com nossas comunidades missionárias dispersas nas fronteiras do mundo (mas prontas a refletirem e se unirem em busca de objetivos comuns): os desafios e as contradições são tão grandes que desmancham velhos modelos de missão e nos obrigam a procurar novos paradigmas, se queremos de verdade procurar respostas para a fome de vida de hoje.

O próprio Bosch reconhece que novos paradigmas de missão ainda estão em gestação dentro da igreja, num tempo de crise fecunda. Ivan Illich pensa a missão como o rosto de uma igreja em transformação, como surpresa e mistério. Uma igreja entendida como Palavra pronunciada em situações às margens.

Exatamente estar à margem é a característica mais preciosa para nós missionários: nosso risco e oportunidade. É o limite além do qual podemos nos perder... mas é também a fronteira de encontro com as verdades dos outros.
Em nosso pobre latim de missionários, tentamos reinterpretar a típica expressão 'ab intra ad extra': a urgência hoje é sair de si mesmo para conseguir encontrar o outro.
A opção básica para nós missionários deveria ser 'habitar o limite', plantar nossa tenda nas beiras, às margens. Desde aquele ponto de observação e ação nossa vida torna-se necessariamente ecumênica, diz Bosch. E ecológica, poderíamos acrescentar nós.

De fato a ecologia apresenta-se também como novo paradigma para interpretar o mundo: não simplesmente estudo de nossa casa comum, mas também “ciência das relações”. Leonardo Boff resgata a novidade hermenêutica da física quântica pela qual tudo vem estruturado em campos de energia sempre interativos. Tudo permanece, em todo instante, sempre junto e interligado. A ecologia tenta interpretar as conexões que existem entre todas as coisas.

Como homens e mulheres de fronteira, cabe primeiramente a nós, missionários, resgatar o valor sagrado dessa rede de relações; a Conferência de Aparecida, afinal, nos ensinou a traduzir de forma mais inclusiva o intenso versículo de Jo 10,10: “Eu vim para que tudo tenha vida”!

Mas, concretamente, como podemos traduzir esse novo paradigma ecológico na prática de nossas pequenas comunidades missionárias? A pergunta fica aberta e precisa da contribuição de todos.
Nesse pequeno texto queremos prospectar três direções para seguir caminhando...


Espiritualidade ecológica

Na fonte de muitas das nossas vocações talvez esteja aquele versículo-chave do livro do Êxodo, capítulo 3,7: “Eu ouvi o clamor do meu povo. Por isso desci, para libertá-lo”. As nossas escolhas missionárias foram e são orientadas por esse clamor, esse desejo de inserção e libertação. Mas hoje, tão forte quanto o grito do povo, nos angustia o silêncio ensurdecedor da vida que já não existe mais. Contextos ambientais completamente estragados, equilíbrios de vida estourados, desertos de monoculturas em lugar de ecossistemas bem integrados com o trabalho dos pequenos lavradores, projetos extrativos que secam as entranhas do solo e dos povos que nele habitam...

O elo mais fraco da corrente é o primeiro a ser esmagado; quando a vítima não tem voz, tudo aparece menos grave e violento. O meio-ambiente sofre essa discriminação sem poder levantar a voz (a não ser toda de uma vez, nos desastres naturais). Por tudo isso, torna-se necessário completar a passagem de Êxodo: “Eu ouvi um silêncio constrangedor e inatural. Por isso desci, para restituir voz e vida a essa terra ferida”.

Ivoni Richter Reimer recupera a sugestiva passagem de Rm 8, no grande sonho bíblico de uma Nova Criação. O processo de recriação que nos cabe é de verdade uma nova gestação, que inclui o sofrimento do parto. De fato, é necessário um trabalho permanente de libertação da própria criação, atualmente amarrada pelas correntes do desenvolvimento sem regras, da ganância sem respeito e do consumo sem medida.

A natureza geme e sofre esperando esse novo parto. Quem tem espírito missionário geme com ela. E Paulo, em Rm 8, nos garante que até o próprio Espírito de Deus, que continua soprando mesmo sobre a grande confusão e violência de hoje, geme conosco no anseio de novos céus e uma nova terra.

Boff, interpretando o pensamento de Teilhard de Chardin, nos convida à espiritualidade da transparência, dia-fania de Deus em todas as coisas. “Em cada mínima manifestação de ser, em cada movimento, em cada expressão de vida, de inteligência e de amor, estamos às voltas com o Mistério do universo-em-processo”. Quem reza, vive e sofre buscando uma nova terra, acaba identificando-se com ela, sentindo-se profundamente parte dela. “Por séculos pensamos sobre a Terra. Hoje importa pensarmos como terra, sentirmos como Terra, amarmos como Terra”.


Metodologia de ação

Assim como em todos os outros campos de trabalho, também nossa ação missionário-ecológica precisa de uma metodologia séria de ação, para não cair na improvisação, na dispersão ou nos bons sentimentos. Essa metodologia precisa ser contextualizada nas diferentes regiões de atuação e pode enriquecer-se a cada dia através da partilha das nossas comunidades espalhadas pelo mundo.

O paradigma ecológico que aceitamos de assumir nos mostra a complexidade das relações e a interconexão dos elementos. Ainda em nível geral, fazem-se necessárias pelo menos três observações:
- Não podemos mais enfrentar um desafio ecológico isolando-o do contexto social, cultural e até religioso em que se encontra inserido. Está em questão uma visão diferente do mundo, que requer conversão, isto é, novas atitudes e novos objetivos nos olhos e na prática de cada pessoa, igreja e sociedade.
- Da mesma forma, não podemos trabalhar as questões ecológicas desconhecendo o forte vínculo que elas têm com a atual estrutura econômico-financeira, fruto de precisas escolhas políticas. Assim, todo projeto de defesa do meio-ambiente ou toda proposta alternativa precisa ser suportado por uma rede de grupos e movimentos estruturada e reconhecida, capaz de exercer pressão sobre os grupos econômicos e políticos locais e multinacionais, orientando assim parte de suas escolhas e prioridades. É o trabalho escondido e teimoso de lobby e advocacy.
- Em nossa prática missionária precisamos constantemente declinar as questões do meio-ambiente com a defesa da vida dos mais excluídos: não faz sentido separar as duas conseqüências do mesmo modelo de desenvolvimento estragado. Ainda mais: é nosso papel promover ações de resgate do meio-ambiente que nasçam exatamente das camadas mais esquecidas e isoladas da sociedade, pois sempre acreditamos que o processo de libertação acontece de baixo para cima.


Comunidades paradigmáticas

As nossas forças missionárias são reduzidas; não conseguimos, sozinhos, o peso político suficiente para exercer pressão e determinar transformações diretas da realidade. Também não faz sentido, para nós missionários, construirmos e mantermos obras consistentes através das quais demonstrarmos que 'outro mundo é possível'.

Qual é, então, o nosso papel? Uma presença profética, isto é capaz de enxergar profundamente dentro da realidade e apontar, junto ao povo, os caminhos a seguir. Uma comunidade missionária consciente e bem inserida na realidade pode-se tornar catalisadora para transformações cujo autor seja o próprio povo local.

O desafio ecológico solicita a presença de comunidades paradigmáticas, localizadas em contextos gritantes, que se façam voz da terra e das pessoas: centros de estudo, denúncia, busca de alternativas e articulação de direitos. Esse tipo de comunidades evita trabalhos isolados e auto-referenciais, não tem a ilusão de resolver tudo, mas a obstinação de insistir sobre o método, agregar forças e educar o povo à ação complexa e multidimensional.

Denunciam e anunciam, espalhando a voz por todos os cantos e aproveitando com sabedoria dos meios tecnológicos e da mídia. Tornam assim visíveis para muitos um pequeno canto de realidade, oferecem a experiência local como possível modelo de ação também para outros contextos e dispõe-se a realizar alianças com todos os parceiros que queiram enfrentar os mesmos desafios.


Vi, então, um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade Santa, uma Jerusalém nova, pronta como esposa que se enfeitou para o seu marido. Nisso, saiu do trono uma voz forte. E ouvi:
“Esta é a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles. Eles serão o seu povo e ele, o Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor. Sim! As coisas antigas desapareceram! Eis que faço novas todas as coisas.”

(Ap 21, 3-5)

Isto é meu Corpo...


Uma frase que escutamos centenas de vezes na missa.
Quando dou a comunhão às pessoas em nossas pequenas comunidades, digo para eles “O Corpo de Cristo”, e a verdade mais profunda dessa frase é que eles são o Corpo de Cristo!
Digo isso a mim mesmo: Albino, Jocilene, Dirce, Asuério, Zélia, vocês são Corpo de Cristo, pedacinhos de comunidade dos quais eu quero cuidar!
O pão partilhado em conjunto nos torna todos iguais, capazes de reconhecer o mesmo Corpo no outro, necessitando dos fragmentos de humanidade que se espalharam em mil cantos e precisam serem reconduzidos em casa, amassados novamente no mesmo pão.

Isto é meu Corpo...
Paloma, 16 anos queimados pelo crack e a prostituição.
Ana Paula, que espera com descuido os resultados do test do HIV, e tem somente 15 anos.
Maria Vitória, que morreu desnutrida nessa cidade, onde circulam milhões em minério e petróleo (cf. post precedente).
É um corpo quebrado que devemos cuidar, nessa época em que, ao contrário, o culto do corpo é individual: academia, regime, perfumes, plástica, re-emplantes...
O Evangelho nos pede de recolher todos os pedaços de pão que ‘sobrou’ (Mt 14,20) e de recompor continuamente o corpo da comunidade.
Sentir e viver em conjunto com todos os membros: “O corpo não se compõe de um só membro, mas de muitos. (...) Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele; se um membro é honrado, todos os membros se alegram com ele” (1 Cor 12)

Maria Vitória


Seu nome era Maria Vitória. Morava no assentamento Nova Vitória.
Mas sua morte denuncia a derrota de todos e de cada um.
Era uma criança desnutrida, filha de uma família com muitos problemas: a mãe com limites mentais, o pai sem trabalho e de frequente alcolizado, um grande número de irmãos mais velhos (porque um, mais novo, já tinha morrido da mesma morte severina).

Mas no caso de Maria Vitória, depois de muito sofrimento, a situação parecia bem encaminhada: finalmente tinha aparecido uma família adotiva que teria os meios para cuidar dela.
O hospital tinha dado alta há duas semanas, dizendo que estava fora de perigo... só precisava continuar com a hidratação e a alimentação.
Mas sexta-feira a criança morreu. O conselho tutelar não avisou ninguém.
Soubemos disso por acaso e corremos ao cemetério: acabavam de fechar o túmulo (o homem da funerária, o pai adotivo e dois conselheiros tutelares). Uma despedida pobre, para uma criança que parece nem mereceu existir.
Ficou lá, no meio de muitos túmulos de outras crianças, várias já cubertas pela grama que cresceu alta mais de um metro. Com certeza, para chegar lá, pisamos por cima de outras crianças sepultadas e esquecidas.

Uma derrata da comunidade local. Derrota dos agentes de saúde do assentamento; do conselho tutelar; do hospital; desse Município que é o segundo mais rico do Maranhão mas ainda deixa morrer de desnutrição!
Essa história não termina só na saudade: denunciamos e pressionamos por maiores investigações sobre as responsabilidades de cada um.
Mas no entanto Maria Vitória perdeu a vida.

O Evangelho de hoje falava de um broto que tem que nascer. Rezando, sentimos a urgência de ver uma nova vida brotar, para entender onde e como cultivar, nessa terra violentata e machucada. Ao contrário, chega mais uma vida ceifada... não sei se é mais forte a raiva ou a decepção.
Mas não somos nós os que precisam de consolo… e talvez nem esse nosso povo, que já acostumou-se a morrer.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).