Participei ao Fórum Social
Mundial (FSM) em Tunes em 2013, com minha família, os Missionários Combonianos.
Pela ocasião, realizamos também um Fórum Comboniano de relance do compromisso
por justiça, paz e integridade da criação.
No mundo magrebino respirava-se
um clima de renascença, que definimos “primavera de diálogo”. Eram os dias da
Páscoa e celebramos a força nova de um povo que estava se resgatando. Despertavam-se
a dignidade e o espírito crítico das mulheres, a potencialidade dos jovens, seu
desejo de abertura ao mundo.
Em 2015 o FSM volta a Tunes, mas
a conjuntura, em pouco tempo, mudou. Na região do norte da África, as
revoluções dos movimentos democráticos não chegaram a desenvolver as
alternativas de justiça, direito e dignidade reivindicadas ao longo de anos de
luta recente.
Cresceu, ao contrário, a violência. Responsáveis disso são, de um
lado, grupos extremistas que querem se impor; por outro lado, governos locais que
se agarram ao poder sem capacidade de propor alternativas; por outro lado ainda,
as intervenções diretas das potências nacionais norte-americanas, europeias e
dos países do Golfo em luta para fortalecer seu poder político, econômico e
energético nessa preciosa região.
“Está em jogo a própria
existência dos estados nacionais” – afirma um documento preparatório do Comitê
Internacional do FSM[1].
“Podem definitivamente estourar os equilíbrios históricos que fundaram a
existência desses Estados e emergir territórios autônomos, com bases religiosas
ou étnicas, sensíveis a todas as manipulações das grandes potencias nacionais
ou regionais do momento”.
O norte da África é também ponto
de fuga de milhares de migrantes em busca de futuro, tentando penetrar as barreiras
dos governos nacionais europeus, ainda amedrontados pela crise econômica que pesa sobre as camadas mais
pobres.
]O Mar Mediterrâneo é muralha e túmulo silencioso de mais de 23mil
desesperados que morreram afogados na travessia, ao longo dos últimos 13 anos.
Há evidentes sinais de uma crise profunda, que descarta, por medo de si
mesma, a possibilidade de alternativas econômicas de maior respeito ambiental e
prefere políticas de curto prazo, antisociais e de extremo impacto sobre os
territórios.
O capital financeiro não está pagando o preço da crise que provocou. Ao
contrário, voltou à ofensiva no planeta inteiro, e com linguagem e atitudes
sedutoras e enganosas.
As grandes empresas e os estados nacionais empossaram-se dos valores e das
bandeiras populares dos movimentos sociais, disfarçando os conflitos e
violações que provocam e de que necessitam para sobreviver e lucrar. Prometem
“desenvolvimento local” a partir de grandes projetos em parceria entre o
capital financeiro internacional e o poder político local, realizam ações descontinuas
de “responsabilidade social de empresa”, assumem parâmetros empresarias automonitorados
(!) de respeito dos direitos humanos e ambientais.
Nessa conjuntura hostil à promoção dos direitos, qual a incidência dos
movimentos sociais? Ainda faz sentido um FSM, e como deveria ser convocado e
realizado? Trata-se de perguntas recorrentes, nas últimas edições desse
encontro mundial dos movimentos populares, que já tem 14 anos de história.
Com certeza, o FSM continua sendo um momento importante de debate e
intercâmbio a partir de temas e resistências comuns, por exemplo frente ao
acaparramento e concentração de terras, à disputa por bens naturais como água,
minérios ou hidrocarburos, ao tráfico de pessoas ou ao desafio das migrações,
ao poder descontrolado das transnacionais ou ao mercado de armas e à indústria
da guerra.
Também, o FSM é espaço de organização das lutas e alternativas
possíveis, como a agroecologia e a soberania alimentar, a geração de energias
limpas e de baixo impato sócioambiental, o decrescimento e as transições
pós-extrativistas como respostas estratégicas à crise desse modelo de consumo.
Encontrar-se
com pessoas e grupos que há tempo, nos diversos cantos do mundo, assumem esses
desafios é uma rica oportunidade de aprendizagem mútua e de resgate da
esperança e da organização de rede.
Cada vez mais, hoje, sente-se uma grande necessidade de convergência. Precisa
repensar o papel dos movimentos sociais, num cenário em que o extremo poder do
capital financeiro provoca uma progressiva fragmentação e dispersão das
iniciativas populares.
O próprio Comitê Internacional do FSM reconhece que uma das inspirações
novas pode vir da iniciativa de Papa Francisco, que convocou no Vaticano, em
outubro de 2014, o Encontro Mundial de Movimentos Populares. Participaram
organizações de excluídos e de pessoas marginalizadas dos cinco continentes, e
de todas as origens étnicas e religiosas: camponeses sem terra, trabalhadores
informais urbanos, recicladores, carrinheiros, povos originários em luta,
mulheres reclamando direitos, etc.
“Uma assembleia mundial dos povos da Terra. Mas dos povos em luta e que não
se resignam”, comentou o diretor de Le
Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet[2].
Francisco, em seu discurso, destacou que “os pobres já não esperam de
braços cruzados por soluções que nunca chegam; agora os pobres querem ser
protagonistas para encontrar, eles mesmos, uma solução para os seus problemas”,
pois “os pobres não são seres resignados, mas sabem protestar e se revoltar”.
Disse que espera que “o vento dos protestos se converta em vendaval de
esperança”.
Essa é uma indicação a ser assumida com cada vez mais determinação e vigor:
a partecipação e o protagonismo das vítimas, dos diretamente atingidos, dos
pobres. O papel das igrejas, nesse sentido é essencial. Elas são uma das poucas
organizações que ainda assume, com fidelidade, o trabalho de educação popular e
articulação de base.
Resgatar a missão das igrejas frente aos desafios que descrevemos significa
também aprofundar a mística da defesa da dignidade e dos direitos humanos.
Valorizar o encontro das diversas religiões na defesa dos bens comuns, da vida
e do planeta.
Os combonianos, por ocasião de seu último Fórum, escreveram: “A força de
nossa fé e identidade está na inclusão e na escuta, mais que na definição de
limites e diferenças. Somos mulheres e homens da rua e do Evangelho. Temos uma
grande riqueza: a experiência missionária para ser partilhada. Mas precisamos
sistematizá-la, recuperar os fragmentos, explicitá-la, refletir mais
profundamente sobre ela. Cabe a nós propor uma espiritualidade e teologia
encarnada, alimentada pela escuta bíblica, a caminho com Cristo, verdadeiro
libertador da história, resgatando a mística dos povos a que pertencemos e que
servimos, em diálogo com o patrimônio espiritual dos povos nativos e das
grandes tradições religiosas do mundo”.
Voltemos, então, ao FSM 2015 com esperança e determinação. Destacamos, como
propostas que serão relançadas também naquela ocasião, algumas frentes de ação
importantes, inclusive para nosso cenário brasileiro e latinoamericano.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)
declarou 2015 Ano Internacional dos Solos, com o objetivo de aumentar a
conscientização sobre a importância do solo para a segurança alimentar e as
funções ecossistémicas essenciais. Um desafio enorme, no contexto mundial de saque
dos recursos e dos bens naturais, com impactos profundos e irreversíveis sobre
as populações e territórios (e também no contexto brasileiro, onde a recente
nomeação da senadora Kátia Abreu como Ministra da Agricultura traiu as
expectativas dos movimentos populares, barrou as poucas oportunidades ainda
possíveis para uma efetiva reforma agrária e consolidou a ameaça latente à sobrevivência
e aos direitos das populações tradicionais).
Também as igrejas do continente latinoamericano estão se dedicando com
progressivo afinco à urgência do resgate da justiça ambiental. Fortemente
incentivada pelo próprio Papa Francisco, nasceu em 2014 a Rede Eclesial
Panamazonica (REPAM), que reúne a experiência de muitos evangelizadores e
missionários nos quatro cantos da Panamazônia com as diretrizes pastorais e a
influência política das diversas conferências episcopais desse território. Na
mesma sintonia, continua um processo de articulação “de base” e ecumênico em
defesa da vida frente às ameaças dos grandes empreendimentos mineiros em
América Latina. “Iglesias y Minería” juntou recentemente quase 100 lideranças
leigas ou religiosas de 13 diversos países, para relançar o acompanhamento das
comunidades atingidas e fortalecer a proteção delas.
O desafio das mudanças climáticas paira com cada vez mais urgência sobre a
humanidade. Em dezembro de 2015 será convocada a 21ª Conferênca das Partes
(COP21), em Paris. Será um encontro decisivo para o futuro do Planeta.
Por
ocasião da recente Conferência de Lima, a Conferência Episcopal Peruana se
pronunciou com contundência: “A Doutrina Social da Igreja se preocupa para que
estejam presentes na política socioambiental as autenticas soluções aos
problemas ecológicos que hoje enfrentamos.
O verdadeiro desenvolvimento deve respeitar a dignidade humana e os
limites do nosso planeta. (...) É importante alcançar um acordo jurídico
internacional, relevante e vinculante, que seja aplicável a todos os Estados”[3].
Cada vez mais movimentos sociais e intelectuais no mundo interpretam a
crise planetária não só em nível financeiro ou como uma disfunção do
capitalismo, e sim, mais profundamente, como uma verdadeira crise de
civilização.
O FSM 2015 terá como tema “Dignidade e Direitos”. Nesse contexto, nossa
primeira e essencial missão de cristãos será resgatar a sacralidade da vida e a
urgência da opção para o protagonismo dos pobres.
[1]
Disponível em: http://fsm2015.org/es/dossier/2014/12/11/contexto
[2]
Ramonet, Ignácio, O dia histórico em que o Papa se reuniu com os movimentos,
Disponível em: www.vermelho.org.br/noticia_print.php?id_noticia=252525&id_secao=8
[3]
Discurso de Dom Salvador Piñeiro García-Calderón,
Arcebispo de Ayacucho, Presidente da Conferência Episcopal Peruana, aos
representantes de governo presentes na COP 20 de Lima, Peru – dez 2014
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