A violência contra a natureza: desespero ou oportunidade?
Reflexão livremente inspirada ao texto “Toda a criação geme...”, RIBLA 21
O gemido de Jó e o gemido da criação
Na Bíblia há esses dois gemidos fortes, que até Deus custa a consolar.
O gemido de Jó é o grito de uma pessoa que se queixa por sua situação (sofrimento, miséria, doença, exclusão...) e busca com avidez condições melhores.
A criação, no entanto, geme lamentando sua vocação à vida cerceada pela violência e ameaçada de morte definitiva.
O sistema econômico atual põe em conflito esses dois gritos, cria competição entre os interesses da pessoa e aqueles da natureza. O acesso ao trabalho é posto em conflito com a preservação do meio-ambiente (por cada novo empreendimento planejado, a palavra mágica que libera todos os licenciamentos ambientais é a promessa de centenas de novos empregos... mesmo se quase sempre se trata de exageros promocionais). Da mesma forma, a defesa da natureza é considerada inimiga do progresso e do desenvolvimento.
Jó busca uma vida plena e abundante; seus interesses são satisfeitos nos países desenvolvidos, enquanto a natureza continua gritando de longe, nos países-depósitos mais pobres do mundo.
Jó, por sua conta, se sente completamente inocente e até em direito de gritar contra Deus, clamando por vida e satisfação pessoal. O Senhor lhe dá razão: “se o seu horizonte for somente a esfera pessoal, você teria plenamente direito de gritar e se queixar. Mas deixe sua voz acalmar-se e comece a escutar também outros gritos: o clamor da natureza, das massas de pobres, do sistema desequilibrado que está desmoronando... Comece a integrar suas necessidades com aquelas da criação toda inteira!”
É esse o sentido da linda poesia de resposta com que Deus consegue amansar a Jó e incluir sua vida numa esfera de existência maior (Jó 38-42).
Quem é o pai da chuva e do orvalho?
Quem é a mãe do gelo e da geada?
Quem transforma a água em pedra
e torna compacta a superfície do oceano?...
Podes dar ordens às nuvens
Para que se desprendam sobre ti os aguaceiros?
Manda chamar os raios,
E eles vêm e te dizem “Aqui estamos”?...
Jó, que inicialmente sentia-se vítima inocente e único merecedor da compaixão de Deus, abre os olhos e declara humildemente: “Eu falei, sem entender, de maravilhas que superam a minha compreensão” (Jó 42, 3). O nosso pequeno homem está começando a pensar com o coração grande de Deus; incluiu em seus sentimentos, sofrimentos e desejos também àqueles da vida maior que está ao seu redor. Está em sintonia com a criação, superou o conflito entre os interesse do indivíduo e o bem maior de tudo o que existe.
A quem cabe uma teologia da terra?
Quem nos ajudará a viver, individualmente e como sociedade, essa conversão de Jó?
Com certeza não serão as grandes multinacionais, poderosas divulgadoras de sua pessoal teologia. Elas estão querendo definir –de cima para baixo- o que é sustentável, ‘verde’, puro.
Mas “as vítimas são sempre locais” (Vandana Shiva). É lá em baixo que se tem a verdadeira noção do impacto de cada projeto.
Há tempo, Deus mudou de lugar! Não precisamos mais de alguém lá em cima que nos diga o que é bem ou mal; não acreditamos que a verdade esteja simplesmente na versão mais divulgada dos fatos; não confiamos nos meios poderosos de comunicação que conquistam as consciências.
“A verdade está nas vítimas” (Jon Sobrino) e Deus escolheu esse único lugar de interpretação da realidade!
Portanto, uma nova teologia da terra só pode nascer nas feridas das vítimas, deixando falar os corpos machucados e escutando o gemido da criação, desde baixo. O Evangelho revela que o Cristo ressuscitado traz em si as feridas da cruz... e é exatamente a partir delas que Tomás reconhece seu Senhor. As feridas da terra e do povo são o Corpo de Cristo violado, ponto de partida para uma reflexão permanente sobre a Vida e a Ressurreição possível.
Alguns pilares dessa teologia da terra
Assumindo o ponto de vista ‘dos de baixo’, podemos ressaltar três atitudes interessantes:
1. A raiva:
“Não agüentamos mais!” é o grito cada vez mais freqüente que escutamos, permanecendo ao lado das vítimas. E esse lamento se faz reação, chega a falar mais alto da violência impregnada na realidade pelas grandes empresas, que atuam silenciosas e impunes pisando sobre os pobres. No começo essa raiva pode espantar e parecer violenta; aos poucos acabamos comparando-a ao desejo instintivo de fazer-se escutar: quando o barulho de fundo da violência é constante e opressivo, precisa levantar a voz.Há pessoas e grupos que há tempo abaixaram a cabeça, frente à pressão violenta imposta sobre eles: acostumaram-se; há outros (estão crescendo) que não agüentam mais e têm a coragem de se posicionar. Às vezes esperamos que essa raiva possa contagiar mais gente, pois o desejo de consumo e acumulação apaga o espírito.Atualmente no Brasil um movimento paralelo está tentando em vários Estados e contextos de ‘legalizar a violência histórica’: os estragos, as chacinas, o desmatamento, a poluição são considerados um mal inevitável, que aconteceu e não tem mais como ser consertado. Esse grupo de poder visa negar a história, anular a ligação estreita dos povos indígenas com suas terras agora cobiçadas, diminuir o tamanho da Amazônia Legal assim que ninguém mais tente recuperar as condições originárias. Frente a esse pensamento clandestino que tenta mascarar a violência subida por essas regiões, é necessária uma reação vigorosa, orgulhosa: a raiva deve despertar-nos!
2. A mística e o cuidado com a vida:
Desde o começo da humanidade, percebe-se uma ligação indissolúvel entre Deus, o povo e a terra. A vida não existe ao faltar de um desses três elementos. Assim acontece também na cultura de nossos povos da terra: profundamente religiosos, não têm preocupação de doutrina ou medo de sincretismo: “Tudo o que é fonte de vida para o pobre cansado e desanimado faz parte do rosto desse Deus que é único, mas que para cada um dos pobres assume uma face diferente, capaz de gerar vida” (S. Gallazzi).
Dentro de nossos povos esconde-se um potencial inexpresso de vida e cuidado: é só ver com que solidariedade e prontidão uma família pobre ajuda a outra em criar os filhos, adotar ou receber uma criança, partilhar o pão. Essas mesmas famílias podem amadurecer um sentimento análogo de cuidado para a vida como um todo, a partir de novas pequenas práticas como: disciplina e autocontrole na hora de jogar o lixo (diminuindo-o ou diferenciando-o); amor para as árvores e respeito para com elas; maior cuidado para a beleza de nossos bairros, casas, ambientes...
3. A criatividade:
As vítimas são sempre locais, portanto as respostas devem nascer delas. Trata-se dessas pequenas práticas alternativas que já acenamos: os pobres têm muita criatividade para ganhar seu sustento, podem aplicar a mesma criatividade para tornar a existência de todos realmente sustentável. Nisso a educação de base tem um potencial enorme e já demonstrou que pode transformar a sociedade.Essa criatividade pessoal, depois, deve transformar-se em criatividade política: hoje pode-se investir em microcrédito, projetos de geração de renda, agroecologia e agricultura familiar, projetos de troca de bens entre campo e cidade...
Estamos no princípio de uma nova criação, se quisermos. Depende de nós, como bem salienta Ivone Gebara:
“A terra está sem forma e a escuridão a encobre... Estamos no princípio. A desordem e a violência imperam e não se conhece mais os caminhos da terra fértil, das águas limpas, do cantar dos pássaros coloridos, das estrelas brilhando no firmamento, da luz envolvente do sol, do ameno e prateado luar, do sorriso satisfeito dos humanos. Estamos no princípio, no princípio caótico de tudo, no princípio/fim do ‘eterno hoje’ de toda a criação. Estamos no princípio hoje, estamos hoje no princípio!”
1. A raiva:
“Não agüentamos mais!” é o grito cada vez mais freqüente que escutamos, permanecendo ao lado das vítimas. E esse lamento se faz reação, chega a falar mais alto da violência impregnada na realidade pelas grandes empresas, que atuam silenciosas e impunes pisando sobre os pobres. No começo essa raiva pode espantar e parecer violenta; aos poucos acabamos comparando-a ao desejo instintivo de fazer-se escutar: quando o barulho de fundo da violência é constante e opressivo, precisa levantar a voz.Há pessoas e grupos que há tempo abaixaram a cabeça, frente à pressão violenta imposta sobre eles: acostumaram-se; há outros (estão crescendo) que não agüentam mais e têm a coragem de se posicionar. Às vezes esperamos que essa raiva possa contagiar mais gente, pois o desejo de consumo e acumulação apaga o espírito.Atualmente no Brasil um movimento paralelo está tentando em vários Estados e contextos de ‘legalizar a violência histórica’: os estragos, as chacinas, o desmatamento, a poluição são considerados um mal inevitável, que aconteceu e não tem mais como ser consertado. Esse grupo de poder visa negar a história, anular a ligação estreita dos povos indígenas com suas terras agora cobiçadas, diminuir o tamanho da Amazônia Legal assim que ninguém mais tente recuperar as condições originárias. Frente a esse pensamento clandestino que tenta mascarar a violência subida por essas regiões, é necessária uma reação vigorosa, orgulhosa: a raiva deve despertar-nos!
2. A mística e o cuidado com a vida:
Desde o começo da humanidade, percebe-se uma ligação indissolúvel entre Deus, o povo e a terra. A vida não existe ao faltar de um desses três elementos. Assim acontece também na cultura de nossos povos da terra: profundamente religiosos, não têm preocupação de doutrina ou medo de sincretismo: “Tudo o que é fonte de vida para o pobre cansado e desanimado faz parte do rosto desse Deus que é único, mas que para cada um dos pobres assume uma face diferente, capaz de gerar vida” (S. Gallazzi).
Dentro de nossos povos esconde-se um potencial inexpresso de vida e cuidado: é só ver com que solidariedade e prontidão uma família pobre ajuda a outra em criar os filhos, adotar ou receber uma criança, partilhar o pão. Essas mesmas famílias podem amadurecer um sentimento análogo de cuidado para a vida como um todo, a partir de novas pequenas práticas como: disciplina e autocontrole na hora de jogar o lixo (diminuindo-o ou diferenciando-o); amor para as árvores e respeito para com elas; maior cuidado para a beleza de nossos bairros, casas, ambientes...
3. A criatividade:
As vítimas são sempre locais, portanto as respostas devem nascer delas. Trata-se dessas pequenas práticas alternativas que já acenamos: os pobres têm muita criatividade para ganhar seu sustento, podem aplicar a mesma criatividade para tornar a existência de todos realmente sustentável. Nisso a educação de base tem um potencial enorme e já demonstrou que pode transformar a sociedade.Essa criatividade pessoal, depois, deve transformar-se em criatividade política: hoje pode-se investir em microcrédito, projetos de geração de renda, agroecologia e agricultura familiar, projetos de troca de bens entre campo e cidade...
Estamos no princípio de uma nova criação, se quisermos. Depende de nós, como bem salienta Ivone Gebara:
“A terra está sem forma e a escuridão a encobre... Estamos no princípio. A desordem e a violência imperam e não se conhece mais os caminhos da terra fértil, das águas limpas, do cantar dos pássaros coloridos, das estrelas brilhando no firmamento, da luz envolvente do sol, do ameno e prateado luar, do sorriso satisfeito dos humanos. Estamos no princípio, no princípio caótico de tudo, no princípio/fim do ‘eterno hoje’ de toda a criação. Estamos no princípio hoje, estamos hoje no princípio!”
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