Conhecia um outro Brasil: passei quatro anos na megalópole de São Paulo, vivendo na periferia com o povo simples, sofredor, vítima da violência urbana, do medo e do desemprego. Sonhei com as Comunidades Eclesiais de Base nos bairros, trabalhei com crianças e adolescentes em conflito com a lei.
O coração de um missionário é populado de gente e de histórias; quando chegou o dia de sair e deixar o povo caminhar, algo também se rasgou no coração. Por essas feridas passa a saudade, sentimento bonito e dolorido que mistura memória, amizade, distância, desejo de re-encontro, sonho, aprendizado a partir dos erros passados e... vontade de recomeçar, talvez com novos erros!
Deixei o Brasil com a promessa de voltar logo; e assim foi.
Dessa vez, porém, a destinação era bem diferente: Açailândia, profundo interior do Maranhão, no nordeste desse País-Continente. As perguntas se amontoavam na cabeça: o que vou encontrar lá? Estarei à altura das expectativas? O povo tem o mesmo jeito dos meus amigos do sul do Brasil?
Já ao chegar tive a primeira resposta: dez horas de trem quente e supercheio viajando com dezenas de paradas de São Luís até Açailândia. Quilômetros e quilômetros de chão livre, grandes fazendas, povoados bem pobres com casas de barro e telhado de palha: aqui não é São Paulo!
Na estação, o por-do-sol esticava as sombras de poucas plantas magras e altas: o trem me descarregou num lugar deserto, afastado da cidade. Desci e parei, sozinho. Essa é minha nova terra; silenciosa, vasta e misteriosa, carregada de perguntas que senti pesar sobre mim todas de uma vez. “Missionário: você veio para quê?”
É a pergunta que continuo me repetindo dia após dia: o que significa, hoje, aqui, ser missionário?
Aquela terra já falava em seu silêncio sofrido, me dei conta disso poucos meses depois.
Uma região que perdeu a palavra e a identidade: era o portal da Amazônia, mas toda árvore acabou derrubada no chão para deixar espaço ao gado; ainda tem, pontuando os pastos de capim, muitos tocos enormes de árvores ceifados. Só fica o cheiro de queimado e um silêncio ensurdecedor: “O que fizeram da irmã natureza?” - parece perguntar...
Por isso, de lá para cá, nos esforçamos de construir uma comunidade cristã atenta à defesa dos direitos humanos, especialmente o direito ao meio ambiente.
Tentamos ler e proclamar o evangelho mostrando quanto ele nos convide à preservação da vida. E toda vez que anunciamos alguma coisa, estamos também denunciando outras, às vezes criando conflitos.
Uma pergunta grande desde essas terras feridas, por exemplo, é a respeito do desenvolvimento: o que significa crescimento? Que tipo de progresso queremos? O que desejamos e vamos entregar para os nossos filhos?
Ao fazer essa pergunta, nem sempre somos bem recebidos: ao denunciar a violência da maior mineradora de nossa região, a Vale, fomos caluniados por artigos de jornais evidentemente do lado da grande multinacional.
Em alternativa, há a estratégia cativante das firmas que querem vender bem sua imagem: quando começamos a criticar as siderúrgicas de nossas regiões pelo impacto ambiental que causam, logo no mesmo dia o dono nos ligou e convidou para conversar com ele, se justificar, explicar que está fazendo todo tipo de esforço...
Frente a esses conflitos, aprendemos que não pode-se avançar sozinhos. Está no DNA de um missionário comboniano: a transformação acontece e o evangelho 'pega' somente onde há protagonismo popular, onde todos e todas se sentem parte de um processo lento de regeneração da vida, das relações.
Assim, o missionário seria com a agulha que passa e repassa um sutil fio de costura entre as pessoas e os grupos, caminhando de uma comunidade para outra, fortalecendo lideranças, unindo a fé com a vida. Um fio de costura que atravessa e une a necessidade de sagrado, de consolo, de paz interior e relação com Deus com a luta apaixonada para que esse mundo seja 'a medida do sonho de Deus'.
Foi o que aconteceu com a comunidade de Califórnia, um assentamento de camponeses que tomaram a terra de um grande fazendeiro que não tinha posse legal. Os assentados conservaram o nome da fazenda Califórnia, talvez para não cancelar o marco simbólico da colonização de nossas terras. Mas outra colonização estava prestes a chegar: pouco depois de construírem suas casas e cultivarem a terra, chegou mais uma vez 'a gigante', a Vale, e instalou bem atrás do povoado 72 fornos industriais para produzir carvão e alimentar as siderúrgicas.
O conflito passou da terra para o ar: de nada adianta possuir o chão, se alguém mais controla e polui o ar por cima dele!
De repente, como missionários, fomos desafiados a acompanhar essa comunidade não mais somente com a missa e a catequese: a urgência e a necessidade do povo era outra.
Nosso testemunho do evangelho passava por atitudes de parceria na luta contra gigantes (logo nos lembramos daquela passagem profética que garante que todos os poderosos têm os pés de barro... e mesmo se ainda não conseguimos derrubá-los, isso nos dá esperança e resistência!).
As nossas celebrações começaram a ser bem mais concretas, na homilia e no diálogo com o povo trazíamos ao altar os problemas, as derrotas e as vitórias no confronto com a grande multinacional. As pessoas sentiam que Deus estava do lado delas e tomavam coragem (as vezes até demais, como naquele dia em que, não aguentando mais, atearam fogo em algumas toras de eucalipto da empresa e bloquearam a rodovia!).
Assim, costurando a oração e a luta, os pequenos conseguem se fazer escutar: no caso de Califórnia, a empresa fechou metade de seus fornos para limitar a fumaça e não quebrar as relações com o povo.
Conseguirão essa rede frágil e esses fios sutis de costura e resistência aguentar o impacto e a pressão dos poderosos?
O sonho de Deus vai se traduzir numa realidade de maior respeito da vida, de cuidado e de ternura entre nós e com a natureza?
São as perguntas de cada manhã e de cada noite, que um missionário entrega ao Pai com humildade e grande esperança.