Diante das polêmicas desses dias sobre o aborto realizado para a vida da criança estuprada de Recife, é importante que todos os cristãos expressem seu pensamento, contribuindo à construção de uma igreja plural em busca da verdade (que nunca ninguém possuirá por inteiro).
Como padre missionário dessa igreja, entendo e defendo sua preocupação na luta contra o aborto (sobretudo quando essa luta vai além da denúncia e se faz articulação concreta de uma rede de proteção às mães, de prevenção da violência sexual e de promoção da dignidade da mulher: graças a Deus hoje muitas pessoas na igreja trabalham silenciosamente para isso!)
Não entendo, ao contrário desaprovo a intervenção do bispo de Recife que excomungou os médicos autores do aborto em questão. A discussão seria demorada, limito-me a oferecer algumas provocações para a reflexão de todos.
nos deparamos com uma situação-limite, um caso extremo. Nunca se pode extrapolar de um caso limite uma lei geral e válida para todos. Nem considero legítimo fazer uso dessas situações extremas para divulgar a norma moral ordinária de uma instituição.
Vou fazer um exemplo: é claro que de frente a um homicídio por legítima defesa ninguém pode clamar pelo desrespeito à vida e concluir que a sociedade está virando em favor do assassinato. Não pode um caso limite tornar-se referência da norma moral.
Ao contrário, especialmente nesses casos limites cabe à Igreja a misericórdia, a compaixão, uma presença solidária e possivelmente silenciosa ao lado das vítimas e uma condenação dura das condições e pessoas que provocaram a violência.a opinião de um bispo, mesmo se suportada por intervenções (menos polêmicas e violentas) do Vaticano e da CNBB, ainda não constitui doutrina moral oficial da Igreja. Quanto mais a igreja nas bases expressar sua visão complementar e não silenciar o dissenso, tanto mais contribuiremos à construção de uma comunidade de fé plural, em busca da verdade, capaz de diálogo e não necessariamente unida sobre todas as complexas questões de moral e ética. Hoje (mas já no Evangelho é assim) faz mais sentido uma pergunta humilde e sedenta de verdade do que uma resposta firme, mas arrogante e incapaz de diálogo.
É difícil estabelecer (cientifica e eticamente) quando começa a vida; não faz sentido colocar um ponto unívoco de referência, sendo a própria vida um processo. É complexo definir quem tem mais direito de viver, nos casos-limites como aquele ao qual nos referimos. A igreja e a ciência precisam de ajuda recíproca e de diálogo construtivo. Todas as vezes que o diálogo é interrompido pelo apelo a uma norma moral superior, o processo de respeito da vida e da humanidade regressa um pouco.
Outra igreja é possível e já deixou seu marco inapagável com dom Helder Câmara, na própria diocese de Recife, de onde o atual bispo soltou sua condenação inapelável à excomunhão.
Graças a Deus, há bispos e bispos. Nessa pluralidade, a igreja avança se tiver a coragem do diálogo e, sobretudo, se anunciar seus valores com a práxis humilde do serviço e do exemplo concreto.
Dom Helder, no centenário de seu nascimento, continua protegendo essa igreja-povo-de-Deus.