Vida e Missão neste chão

Uma vida em Açailândia (MA), agora itinerante por todo o Brasil...
Tentando assumir os desafios e os sonhos das pessoas e da natureza que geme nas dores de um parto. Esse blog para partilhar a caminhada e levantar perguntas: o que significa missão hoje? Onde mora Deus?
Vamos dialogar sobre isso. Forte abraço!
E-mail: padredario@gmail.com; Twitter:
@dariocombo; Foto: Marcelo Cruz

martedì 17 settembre 2024

Anacleta

“Quem vai botar o guiso no gato?”
A gente ria muito, quando Anacleta nos desafiava com esta pergunta de ratinhos inconformados com sua condição de vida, fugindo e se escondendo de quem os perseguia...
Os planos dos ratinhos eram bem organizados: vamos nos juntar, chegar por trás do gato, pular por cima dele e finalmente neutralizá-lo... mas quem seria tão valente para colocar o guiso no gato?

Assim, em nossos encontros comunitários, nos intercâmbios e nas formações populares, Anacleta provocava: quem? Como? Quando?

E ela era a primeira a puxar o grupo, como foi nos longos dias de ocupação da ferrovia, para bloquear o dragão de ferro da mineração: povo quilombola acorrentado nos trilhos, um gesto paradoxal de liberdade e rebeldia.

Anacleta é uma mulher-povo, em volta dela se moviam pessoas, lutas e sonhos. Comovia-se pela dor dos outros e entendia muito bem que a liberdade só tem valor se for de todas, de tudo.
Chorava em seu lamento, somando-se como quilombola aos povos indígenas em marcha. Quando a Câmara Federal humilhou a causa indígena e aprovou o marco temporal, ela estava lá, na Praça dos Três Poderes, junto aos “irmãos índios”; passou à frente de todos e entoou um longo canto de luto e de luta, renovando a aliança da teia dos povos. 

Caixeira do Divino Espírito Santo, celebrava a vida no grande círculo de sua família; nos intercâmbios das comunidades, ritmava no canto e na batida suas mensagens de resistência: “Não nasci para ser mansa. Ah! Eu tenho meu dom de braba!”.
Já quando o corpo estava mais frágil, seus versos eram de memória e cuidado: “São os chiados das flores e o canto do pássaro / a pisada no chão e as ondas do mar / que me ensinam a cantar / Agora é tempo é de cuidar”.

Agora que você se ancestralizou, é tempo de cuidar de nós, dona Anacleta: de Santa Rosa dos Pretos, dos quilombos do Maranhão e da “humanidade quilombola” na qual você segue vivendo!

domenica 28 gennaio 2024

Brumadinho: fazer memória para defender a vida

 

Chegando em Brumadinho para celebrar os cinco anos da tragédia-crime que matou 272 pessoas e contaminou a bacia do rio Paraopeba, muitos de nós recebemos uma rosa amarela e uma placa com um dos nomes das vítimas.

Carreguei estes símbolos ao longo de todas as celebrações: a missa, a procissão, o ato em memória das vítimas e o abraço final. Durante a missa, uma senhora aproximou-se a mim, chorando e pedindo se podia trocar o nome que ela carregava com aquele que eu tinha, pois se tratava do filho dela. Abraçamo-nos longamente e deixei que ela se encontrasse mais uma vez com a memória viva do filho, que foi sepultado pela lama tóxica e maldita.

A memória
“É graças a vocês, famílias de Brumadinho, que a memória deste crime ainda não se apagou. É graças a vocês que se reduziu o risco de repetição, porque fazer memória é exigir justiça, é cobrar garantias de não repetição!”. Dom Francisco Cota, bispo de Sete Lagoas e membro da Comissão para Ecologia Integral e Mineração da CNBB, tomou posição forte e profética na celebração eucarística, a cinco anos do desastre.
“Não foi acidente! A Vale mata rio, mata peixe e mata gente!” – gritavam, tomados de dor e indignação, os romeiros.

A memória é um primeiro passo de ressurreição, de esperança na vida que não morre. “Não vamos esquecer!” – repetiu-se muitas vezes no ato de denúncia. E foram citados muitos fatos graves que ninguém quer esquecer: “a covardia da mineradora Vale e da empresa certificadora Tuv Sud”; “as mentiras sobre segurança do trabalho”; “a frase do presidente da Vale, Sr. Fábio Schwartsman, que não se deveria culpar a Vale porque esta empresa é uma joia brasileira”; “o executivo da Tuv Sud, que disse que mandaria seu filho sair imediatamente da mina quando soube do perigo – e não fez nada para os outros”; “os tratamentos de saúde para depressão, com psicólogo, psiquiatra e medicamentos ansiolítico que tivemos que tomar”; “o voto do desembargador relator que foi favorável ao habeas corpus do Sr. Fábio Schwartsman para retirá-lo do processo criminal”; “a manutenção do refeitório, do centro administrativo e do posto médico logo abaixo da barragem que desmoronou, sem nenhuma preocupação com os trabalhadores”; “as sirenas que não tocaram para salvar vidas”; “o fato que a Vale soubesse, meses antes, que quem estivesse a menos de dois quilômetros de distância da barragem não teria tempo para sobreviver”; “a negligência do presidente da Vale que, ao receber denúncia anônima via e-mail relatando a insegurança da barragem 16 dias antes da queda, a ignorou e, ao contrário,  buscou o denunciante para puni-lo, chamando-o de ‘cancro’”.

Pode parecer exagero das famílias, ainda carregadas de indignação e raiva. Mas poucos dias antes, o delegado da Polícia Federal Cristiano Campidelli denunciou tudo isso nos mesmos tons, durante um seminário  contra a impunidade, organizado pela associação das famílias das vítimas, a Avabrum: “A verdade é que a Vale fez muito esforço para matar essas pessoas em Brumadinho; as pessoas morreram porque elas foram enganadas”, disse o delegado, confirmando a persistência criminosa da empresa e o simulado mentiroso, pelo qual ao tocar a sirene de emergência haveria para todos 15 minutos de tempo para saírem da área de perigo. Não houve toque de sirene, e as pessoas foram cobertas pela lama um minuto depois da queda da barragem.

As mentiras
Assim como foram mentiras os planos de segurança e a preocupação da empresa pelos trabalhadores/as e moradores/as de Brumadinho, é mentira afirmar que a mineração é sustentável, porque não tem segunda safra após o extrativismo predatório.
É mentira afirmar que traz desenvolvimento, porque este desenvolvimento é para poucos e a preços muito altos para a grande maioria das outras pessoas.
É mentira que esta mineração é inevitável, porque até agora acumulou bens financeiros nos bolsos de poucos e impediu soluções econômicas alternativas que beneficiariam muito mais pessoas.
É mentira acreditar que a solução à crise climática se dará simplesmente pela transição ao novo modelo de “energias limpas”, que continuam precisando de mineração maciça nas áreas de sacrifício de tantas partes do mundo.

A esperança
Mesmo se carregadas de dor e revolta, celebrações como aquela de Brumadinho devolvem esperança. É a esperança de famílias que não aceitam esquecer, não abaixam a cabeça, não se rendem aos acontecimentos, exigem dignidade, reparação, memória e garantias de não repetição!
Dá esperança ver diversas expressões religiosas (católica, evangélica, de matriz africana, indígena) caminharem juntos, cantarem e chorarem, invocarem os espíritos em defesa da Vida e aliar-se frente a gigantes inimigos que estão atacando seus territórios.

Comungar na Eucaristia foi “fazer isso em memória de Jesus”, repetir o compromisso e o dom total de muitas pessoas, para que vença a vida e não se imponham as forças de morte. Foi comungar com as vítimas e sentir presentes, nelas, o corpo ferido e ressuscitado de Jesus, que continua caminhando conosco!

Fé e política hoje

Vamos dialogar informalmente sobre a relação entre fé e política?
Hoje, existem dois extremos: muitas pessoas têm um certo “nojo” da política, como se fosse só um espaço de corrupção e de alianças mafiosas.
Não faltam exemplos que corroborem isso, mas... não acham que esta insistência sobre a corrupção poderia também ser uma estratégia de quem tem o poder, para manter todos os outros distantes dele, desiludidos e desinteressados, e assim seguir administrando, dentro de um círculo restrito de controle da política representativa?
Precisamos voltar a acreditar na política, a melhor das políticas, como diz Papa Francisco!

Ao outro extremo, tem aqueles que manipulam a fé por interesses políticos. Perceberam que a religião pode ser um ótimo instrumento para agregar pessoas em volta de um pensamento fundamentalista, que quer impor somente sua doutrina e não se abre ao diálogo da cidadania, caindo inclusive na discriminação religiosa e chegando frequentemente a adorar Mamona, em lugar de Deus.

Na exortação Evangelii Gaudium, porém, Papa Francisco retoma uma frase de Papa Pio XII: a política é a melhor forma de amar (EG 205).
Para ser mais claro, volta a explicar-se na encíclica Fratelli Tutti: “Alguém ajuda um idoso a atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o político constrói-lhe uma ponte, e isto também é caridade. É caridade se alguém ajuda outra pessoa fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma sublime de caridade que enobrece a sua ação política” (FT 186).
Portanto, a política tem tudo a ver com a fé. Não devemos fugir dela, nem permitir que ela use nossa religião de forma manipulada.
Precisamos habitar com o Evangelho todos os espaços políticos! Por isso existe a Doutrina Social da Igreja, que é um ensinamento, um magistério muito sólido e consistente da Igreja, para que nosso jeito de ser cristãos e cristãs leve à transformação da sociedade, inspirando-nos no Reino de Deus.
Precisamos estudar mais a Doutrina Social da Igreja! A CNBB está propondo alguns cursos sobre isso, como é importante aprofundar e comprometer-se!
Precisamos de mais cristãos e cristãs que se envolvam com honestidade e paixão na política.

Mas, atenção: não estamos falando só de política representativa, aquela que elege algumas pessoas e depois, por 4 anos, as esquece no cargo que lhes foi confiado. Estamos falando de participação!
Todas as formas de se organizar na sociedade para proteger e garantir o bem comum são política. O bem comum, o bem viver, a ecologia integral: são todas expressões de uma visão ampla, inclusiva, como a utopia do Reino de Deus.
E são todas perspectivas que começam a ser organizadas e construídas a partir dos territórios. Papa Francisco, por exemplo, valoriza muito o diálogo da Igreja com os movimentos populares, que ele chama de “semeadores da mudança, poetas sociais” (FT 169). Portanto, é a partir dos territórios que nossa fé se torna política.
Pela fé, os cristãos denunciam uma injustiça, uma situação de exclusão, desigualdade ou falta de oportunidades.
Pela fé, os cristãos se organizam e participam nos conselhos e assembleias que debatem o bem comum e projetos coletivos num bairro, numa cidade, numa região...
Pela fé, defendem seus territórios, como fez recentemente uma comunidade cristã urbana, que se organizou contra a especulação imobiliária e conseguiu defender uma área verde em seu bairro. Ou como está fazendo a Pastoral da Moradia, que luta pelos direitos a saneamento básico, transporte, saúde e educação nas favelas e grandes periferias. Ou, ainda, como faz o CIMI, Conselho Indigenista Missionário, que repudia o Marco Temporal porque condena os povos indígenas e faz os interesses do agronegócio invasor.

Pois é, a política não está tão distante de nós. Todos e todas nós podemos ser “artesãos da paz”, recorda Papa Francisco em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz em 2022.
A paz e a melhor política estão em nossas mãos e se constroem a partir dos territórios onde vivemos.

lunedì 18 dicembre 2023

Aguçar o olhar e enxergar sinais de Paz

Paz!
A pedimos com força, neste período de Natal.
“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz”, profetiza Isaías.
Para reconhecê-la, na escuridão de muitas situações, é preciso caminhar e aguçar o olhar.
Não ficarmos parados, anestesiados. Não nos deixarmos cegar por tantos brilhos sem horizontes.
Buscar, esperar, confiar, ouvir os pequenos sinais da realidade e do Espírito.
Seria bom viver o Natal assim, como uma peregrinação noturna, feita de silêncio, de oração e de escuta, de espera.
Este mundo aos pedaços nos pede isso, a começar pela querida Palestina, destruída e agonizante; pede-o também a Mãe Terra, que não aguenta mais o nosso modo de vida.

Também sentimos essa necessidade na vida quotidiana, nas dores e nas expectativas das nossas famílias. Um Natal em que possamos falar uns aos outros sobre esperança.
O que é que, apesar de tudo, nos mantém vivos e nos dá sentido?
Um Natal para chegar na profundeza desta busca... e assim não afundar.

De minha parte, compartilho algumas brechas de luz, como a organização dos movimentos populares e das pessoas em situação de rua, que aumentaram muito nos últimos anos: recentemente, a mobilização dessas pessoas conseguiu aprovar uma política pública federal para prevenir novas situações de abandono, para cuidar de quem estiver em situação de rua e para reconstruir perspectivas para sair dela.
O lançamento ocorreu no Palácio do Planalto, com o Presidente da República, diversas autoridades e vários representantes da população em situação de rua, no mesmo espaço.
Me faz pensar numa política com os pés no chão, do ponto de vista das calçadas e não apenas das grandes rodovias...

Nos próximos dias, a Comissão para Ecologia Integral e Mineração da CNBB visitará o povo Ka'apor, no Maranhão. Eles se veem cada vez mais invadidos pelo desmatamento, o garimpo, a mineração e as falsas soluções dos créditos de carbono. Os Ka’apor perderam a fé na proteção do Estado, mas estão se organizando como Guardiões da Floresta, coletivos de autodefesa que realizam monitoramento permanente de seus territórios e mapeamento participativo.
Me faz pensar numa Igreja que se torna rebanho, para aprender a ser pastora...

Nos últimos meses, no Equador, jovens estudantes, famílias e comunidades cristãs uniram-se num referendo histórico, que mobilizou milhões de pessoas e aprovou a escolha de deixar o petróleo no subsolo, na região amazónica de Yasuni, para preservar a sua biodiversidade.
Da mesma forma, no Panamá, o protesto popular – também apoiado pelos bispos, que saíram às ruas com o povo – conseguiu cancelar as concessões mineiras e evitar que o Estado se vendesse à voracidade das empresas predatórias.
Me faz pensar em novas formas de economia, decoloniais, que podem se afirmar quando as pessoas se organizam e se comprometem...

Enxergar sinais de luz ajuda a não nos perdermos. Quem sabe seja este o melhor presente para a noite de Natal? Menos coisas e mais sinais, de carinho, de partilha, de comunhão com a vida dos povos e da Terra.
Feliz Natal!

lunedì 30 ottobre 2023

Que jorre a paz como uma fonte e a justiça como torrente que não seca!

O mês de outubro tem sido dramático, pela grave crise da seca que atacou boa parte de nosso país e colocou em crise especialmente a Amazônia, e pelas fortes enchentes no Sul do Brasil.

A humanidade está de joelhos frente à emergência climática e a criação inteira está gemendo. Papa Francisco publicou, no dia de São Francisco, a exortação Laudate Deum, mostrando sem meias palavras quem são os responsáveis desta crise e quão urgente é colocar um limite ao poder econômico e aos países que mais estão poluindo.

Poucos dias depois, a guerra entre Israel e Hamas quebrou ainda mais este mundo “em pedaços”. Os apelos do Vaticano e da ONU não estão sendo escutados. Unimo-nos aos movimentos populares do mundo inteiro, que neste dia 4 de novembro irão descer às ruas, clamando pelo cessar do fogo, a abertura de corredores humanitários e a convocação de uma conferência de paz. Parem! A guerra é sempre uma derrota! – clama Papa Francisco.

Frente a situações tão complexas, a gente se sente impotente e isso provoca também um forte desânimo. Ou, mais facilmente, as pessoas se retiram em seu mundo individual, desistindo do compromisso por uma sociedade mais justa e na paz.

Por isso, queria brevemente trazer o testemunho de tantos cristãos-as e pessoas de boa vontade que, ao contrário, não desanimaram e continuam a trabalhar como formiguinhas, como artesãos e tecelãs da Paz.

Refiro-me aos muitos grupos, Brasil afora, que estão trabalhando na 6ª Semana Social Brasileira. Um percurso que começou 4 anos atrás e que está chegando à fase de conclusão, de encaminhamentos e ações. Antes, foi traçado um profundo diagnóstico sobre “O Brasil que temos”, focando no direito de todas as pessoas a Terra, Teto e Trabalho, conforme a missão que Papa Francisco deu às pastorais sociais e aos movimentos populares.

Agora que temos claro o diagnóstico, os mutirões da Semana Social, espalhados por todo o Brasil, estão construindo um Projeto Popular, que intitulamos “O Brasil que queremos: o Bem Viver dos povos”.

Outubro foi um mês intenso de trabalho nisso, porque precisamos chegar a março de 2024 com este projeto pronto e com uma lista de ações concretas, de transformação social e incidência política, que queremos assumir como Igreja e movimentos em todos os territórios.

“Que jorre a paz como uma fonte e a justiça como torrente que não seca!” – dizia o profeta Amos num versículo que inspirou o Tempo da Criação, concluído em outubro.

Que o trabalho formiguinha da Semana Social Brasileira consiga envolver mais e mais pessoas, porque a paz – ensina o Papa – se constrói a partir de dentro e de baixo!

giovedì 8 giugno 2023

Corpo de Cristo e dos indígenas

O pão partido é o símbolo que mais contrasta a tentação do poder, quase sempre bênção para quem acumula.
Este pão é Corpo de Jesus, consagrado hoje mais uma vez na celebração de Corpus Christi, na Esplanada dos Ministérios.
Na mesma Esplanada, nestes dias, cerca de mil e quinhentos indígenas, de diversos povos do Brasil, ficaram acampados, organizando seminários e debates, manifestações e danças circulares em busca da defesa de seus territórios, contra a tese jurídica do Marco Temporal.
Dois eventos profundamente interligados, que a vida religiosa celebra e acompanha com devoção e compromisso. A Eucaristia é presença viva do Deus que se faz carne e história no meio de nós. Nos corpos destes indígenas que deixaram suas terras, padecendo o frio das noites de Brasília nas tendas e clamando pelo direito à terra dos ancestrais, reconhecemos também o corpo ferido e humilhado de Jesus, como ensina o Evangelho de Mateus.
Pela fé, hoje, o povo de Deus reunido em celebração caminhará em procissão, como uma só família que busca vida plena. Com a mesma fé e esperança, nestes dias, os povos indígenas dançaram ritmando seus passos ao som do maracá.
Chamou-me a atenção a deputada indígena Célia Xakriabá: a sessão do debate na Câmara estava começando, mas ela fez questão de correr fora, ao encontro de seus parentes. Não teve tempo de dizer nada, nem um discurso breve; simplesmente, juntou-se à roda de dança, no ritmo que invocava a resistência dos ancestrais, no Toré, no Guachiré... Os povos indígenas dizem que é com as batidas dos pés destas danças que o mundo se mantém em equilíbrio.

A dureza da realidade, porém, corrói a intensidade desta mística.
O julgamento do Marco Temporal foi novamente adiado, pela quarta vez, em seis anos de um processo que os povos teimosamente não querem largar.
No campo religioso, muitas pessoas que celebram Corpus Christi se escandalizam quando são feitas aproximações como esta, entre o “sagrado” e o “profano”.
Mas o sagrado terá fronteiras, na Eucaristia cósmica (LS 236) que celebramos hoje?
Eu quero acreditar, com esperança, numa Igreja a caminho em busca de Jesus encarnado, ontem, hoje e sempre, nos corpos feridos e na fé profunda do povo simples, que comunga e que parte o pão.

sabato 8 gennaio 2022

Por uma Igreja sem mais ouro

Hoje, dia do Batismo do Senhor, no santuário Santa Cruz da Reconciliação celebramos a S. Eucaristia com um cálice e uma patena de madeira (Pau Brasil). É uma tentativa de desprender a Igreja do ouro.

Na Igreja Católica, o ouro é usado nos objetos artísticos, nas decorações e, sobretudo, nos vasos sagrados para a celebração da Eucaristia. Entende-se, com isso, dignificar os símbolos do encontro entre a humanidade que celebra e Deus. Também na cultura bíblica o ouro é associado à realeza e à divindade. Não é assim, hoje, especialmente em América Latina.

O ouro é um dos produtos mais cobiçados durante centenas de anos de colonização, escravidão e saque de nossas terras. Buscando o ouro, milhões de vidas foram sacrificadas e a história de nossa Pátria Grande prejudicada.

Hoje, a extração de ouro avança em escala industrial, com lavagem de dinheiro sujo e violação sistemática da lei, destruindo e ameaçando territórios e comunidades; na Amazônia acontecem os maiores estragos e a mais brutal violência (os exemplos mais recentes são os 20mil garimpeiros em terras Yanomami, provocando conflitos e contaminando os povos pela Covid; as ameaças e violências contra as mulheres Munduruku; a morte de duas crianças Yanomami sugadas pelas dragas de garimpo; as centenas de balsas e dragas em Autazes – Rio Madeira; as grandes quantidades de mercúrio despejadas nos rios).

Também em outros territórios a extração do ouro é sempre ligada a muita violência. Para chegar a um anel de ouro de 10 gramas, é preciso explodir e retirar 20 toneladas de dejetos, utilizar 1,5 Kg de cianeto e 7mil litros de água.

Muito ouro é armazenado em cofres - como reserva de valor ou como joalheria. Já extraímos ouro suficiente da terra e as reservas de ouro da terra são limitadas. No entanto, a mineração de ouro continua aumentando.

Não cremos que, hoje, Deus se sentiria adorado e respeitado pelo uso deste metal “precioso”, cuja extração carrega tantas injustiças.

Ao contrário, os vasos sagrados de madeira nos reconectam ao ciclo da natureza e da semente que morre e dá vida, nos incluem na dimensão cósmica e pulsante da celebração eucarística. Decorados com os grafismos indígenas, nos recordam a encarnação de Jesus em todas as culturas, o respeito que é devido a elas, a reconciliação que somos chamados-as a promover numa história de tamanha exclusão.

Mais de 500 bispos participaram ou subscreveram o Pacto das Catacumbas, durante o Concílio Vaticano II, em 1965. Entre seus compromissos proféticos, diziam: “Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata”.

Também nós, hoje, reassumimos esse compromisso, em nosso jeito de celebrar, viver, sermos solidários-as e promovermos a justiça e a paz.

Leia-se a Introdução geral ao Missal Romano, n. 329, sobre os Vasos sagrados.